Os números são assustadores. Na contagem divulgada
até este sábado (25), 381 mortos. Trezentas e oitenta e uma vidas interrompidas
por um inimigo invisível. Não, não são só números. São pessoas. Com
filhos, netos, sobrinhos, vizinhos, contas para pagar, um jardim para regar,
aquele sonho prometido para daqui a pouco. Ana Cristina tinha três empregos
para dar conta de criar sozinha a filha. Djalma era fanático pelo Sport e
adorava tocar tambor na roda de samba. José Carlos cuidava da mulher portadora
de Alzheimer com tanto amor que ganhou até homenagem. Lenira escreveu o
primeiro livro aos 100 anos. É preciso pedir licença à dor para contar as
histórias, mostrar os rostos. Remexer nas lembranças carregadas de afetos. Nem
todos conseguem. Não nesse momento. O mais difícil é não poder dizer adeus. Ver
pela última vez, dar um beijo, se despedir. Na voz de quem sempre esteve perto,
o susto de tudo ser tão rápido.
A saudade tem tantos rostos. E silenciou lares tão
diversos, de endereços nobres a casas muito humildes, sem água nem esgoto. É
certo que os mais velhos são os mais vulneráveis. Mais de 70% das vitimas da
covid-19 em Pernambuco tinham idade a partir dos 60 anos. Mas há perdas também
na juventude. O marido de Mysleid, o motorista de aplicativo Djalma Ramos,
tinha só 38 anos. Homem alto, forte, saudável, trabalhava 12 horas rodando pela
cidade. Em um mês, as mortes diárias para o coronavírus cresceram de forma
brutal. Foram duas, no dia 25 de março, data do primeiro registro oficial.
No balanço da última sexta-feira, o Estado já somava 30 óbitos contabilizados
em 24 horas. Para cada uma dessas famílias, a dor extrapola a perda. Ela se
potencializa, e isso é algo totalmente novo, na impossibilidade de viver o
luto. Pelo menos da forma como sempre fizemos.
Em todos os relatos colhidos nessa reportagem, a pressa
na hora do adeus, imposta por questões sanitárias, tem sido a parte mais dura
de superar. Não dá tempo de chegarem os primos, os amigos, os netos, o colega
de trabalho. Os poucos que podem estar presentes no sepultamento, na
maioria das vezes, acompanham de longe. A despedida é de um caixão fechado. A
imagem do corpo embalado em um saco plástico, sem flores, sem velas, sem tempo
de dizer uma palavra derradeira, fazer uma última oração, torna a despedida
incompleta, um peso a mais de se carregar.
“O que é o luto? É o tempo de que o cérebro e o corpo precisam para se estruturar da perda. E este primeiro momento está sendo negado, em função da pandemia, do risco de contaminação. Poder se despedir da pessoa querida é o primeiro passo do processo de habituação que envolve o luto e a superação dele”, explica Luciana Gropo, psicóloga cognitiva e comportamental. Uma alternativa, ela ensina, é cada um criar seu próprio ritual de despedida. “Vivenciar de uma maneira subjetiva essa perda, seja colocando uma foto num lugar de destaque, fazendo uma oração. O importante é tentar encontrar uma forma de deixar o cérebro menos reativo àquele sofrimento.”
Falar também é um caminho. Relembrar as histórias,
refazer a trajetória de quem se foi. Quatro famílias concordaram em dividir,
mesmo num momento tão difícil, a dor dessa saudade. Até como uma forma de
homenagear e tornar mais viva a memória de uma vida inteira.
“É um
processo muito violento”
O aniversário de 75 anos do aposentado José Carlos Lins
de Queiroz havia sido comemorado no domingo, dia 15 de março, numa pizzaria,
com a família. Os sintomas chegaram dois dias depois. Passada uma semana, com a
persistência da febre alta, ele foi levado a um hospital particular pela filha,
a professora universitária Juliana Fônseca de Queiroz Marcelino, 42. Os
exames indicaram uma infiltração no pulmão. Um dos médicos desconfiou de
covid-19 e notificou o quadro suspeito à Secretaria Estadual de Saúde, além de
solicitar o exame para coronavírus. “Outros médicos que o atenderam chegaram
a diagnosticar o caso como gripe. O atendimento cuidadoso desse profissional
foi fundamental para já direcionar o tratamento do meu pai”, diz Juliana.
Mesmo com a suspeita, ele foi mandado para casa. Após
apresentar uma piora na capacidade de respirar, o aposentado voltou ao hospital
já com os dois pulmões comprometidos. O quadro se agravou e, apesar de não ter
nenhuma comorbidade ou doença preexistente, José Carlos veio a óbito, quase
três semanas após o início dos sintomas.
“É muito violento todo o processo. São muitos medos, muitos fantasmas. Como estive com ele todo o tempo, precisei ficar de quarentena e não pude receber um abraço dos meus filhos. É devastador”, conta a professora. Já na UTI, o aposentado chegou a tomar hidroxicloroquina, medicamento que tem sido alvo de polêmica no tratamento da covid-19. Após o uso da medicação, José Carlos teve duas paradas cardíacas. “Fiquei com a suspeita de que o remédio tenha contribuído para a morte dele. Mas não temos como ter certeza”, relata Juliana.
Uma das recordações mais difíceis do período em que o
pai esteve lutando contra a doença foi o momento em que ele recebeu o
diagnóstico de que poderia ser um quadro de covid. “Somos evangélicos. Ele era
um homem que tinha muita fé, mas ali sentiu o peso da notícia. Ficou abalado.
Disse que eu não me preocupasse. Porque ele tinha 75 anos e já havia vivido
muito tempo. Foi quando ele falou: ‘Seja feita a vontade de Deus’”, conta,
emocionada, Juliana.
José Carlos sempre foi a referência de todos. Forte,
saudável, paciente, carregava uma sabedoria que norteava os passos dos filhos.
Perdeu o pai ainda adolescente e logo precisou virar arrimo de família. De
todas as lembranças que deixou, uma era especial. A de cuidador. Foram 45 anos
de casados. E o cuidado com a esposa, portadora de Alzheimer, virou um exemplo
para os filhos. “Anotava tudo em planilhas, os remédios, os horários; era ele
quem levava mamãe para as consultas médicas. Por onde passava, chamava atenção
a dedicação com que cuidava dela”, recorda a filha.
Uma vida
dedicada a cuidar dos outros
No dia 27 de março, a auxiliar de enfermagem Ana
Cristina Tomé, 52 anos, fez uma fotografia ao lado das companheiras de trabalho
no plantão noturno da Policlínica e Maternidade Professor Barros Lima. Ana
Cristina é a segunda em pé, da direita para a esquerda, na foto ao lado. Elas
posaram para endossar a campanha “Fique em casa”, protagonizada por
trabalhadores da saúde que atuam na linha de frente de combate à covid-19. No
cartaz, o apelo pelo isolamento social. Foi a última vez que Ana esteve na
maternidade.
No dia seguinte, já trabalhando na UPA da Bomba do
Hemetério, ela passou mal, com cansaço e falta de ar. Liberada do plantão, foi
mandada para casa. Como os sintomas continuaram ainda mais fortes, Ana
procurou, quatro dias depois, a UPA de São Lourenço da Mata. Chegou por volta
de meio-dia. Foi mandada direto à UTI para ser entubada. Às 15h, estava morta,
após sofrer uma parada cardiorrespiratória. A família teve menos de quatro
horas para providenciar o enterro. Por volta das 18h30, o corpo de Ana, envolto
em um saco plástico e dentro de um caixão fechado, foi sepultado no Cemitério
de Camaragibe, cidade onde morava. Apenas sete pessoas da família estavam
presentes.
“Na sexta, ela chorou a morte de Betânia. No sábado, foi a vez dela.” A frase é do gerente de supermercado André Tomé, irmão de Ana Cristina. Betânia Ramos, 55, a quem André se refere, também era auxiliar de enfermagem. Trabalhava com Ana no Hospital Getúlio Vargas. Adoeceu e foi levada ao Hospital dos Servidores, onde veio a falecer. Ana só teve o material colhido para exame após a morte. O resultado, confirmando a contaminação, a família só ficou sabendo pela imprensa. Na segunda-feira (6), na coletiva diária feita pelo governo do Estado, o secretário André Longo anunciava, em meio ao balanço diário, a morte das duas auxiliares de enfermagem. Foram as primeiras vítimas da covid-19 entre profissionais de saúde do Estado.
Não ter recebido nenhuma ligação, nenhuma informação
por parte das autoridades de saúde, revoltou a família de Ana Cristina.
“Nenhuma das três secretarias de Saúde deu importância ao caso dela. Nem a de
São Lourenço, onde ele foi atendida; nem a de Camaragibe, para onde mandaram o
resultado do teste; nem a do Recife, onde ela trabalhava. Ficamos muito
tristes. Não recebemos nenhuma assistência”, afirma André. Ana Cristina tinha
uma filha, de 24 anos. A jovem também teve confirmação positiva para covid.
Felizmente, os sintomas foram leves e ela está se recuperando. Como as duas
moravam juntas, ela agora está sozinha, em casa. Em isolamento social. “Tem
sido muito difícil para ela. Porque, além de superar a perda da mãe, não pode
receber visitas.”
De todas as dores que carrega, André fala especialmente
de uma. “Não pudemos fazer uma homenagem a ela, por toda a dedicação que ela
sempre teve no trabalho. Antes de adoecer, ela mandava áudios para a família,
orientando sobre a prevenção, dando dicas de como se proteger. Foram 28 anos de
carreira na saúde”, destaca o irmão. A homenagem veio das colegas de trabalho.
As auxiliares de enfermagem gravaram um vídeo, postado nas redes sociais: “Nós,
amigos da Barros Lima, estamos de luto por nossa amada amiga. Ela deixou seu
legado, lutando pela vida de tantos. Você nunca será esquecida. Saudades”.
“Acreditem. Essa
doença é terrível”
A voz já estava ofegante. “Tô indo para a UTI. A
doutora veio agora falar comigo. Disse que vai me transferir porque lá tem mais
gente para cuidar de mim. Ela falou para eu não ter medo. Não comenta com
mainha que eu vou para a UTI, não, visse? A médica explicou que o oxigênio do
meu sangue está baixando. Mas não fica preocupada, não. Tá tudo certo.”
Foram dois áudios gravados e enviados na noite da
sexta-feira, dia 17 de abril, para a esposa, Mysleid Gonçalves, 41 anos.
Naquele mesmo dia, o motorista de aplicativo Djalma Ramos, 38, havia sido
internado no Hospital Oswaldo Cruz, com cansaço, dificuldade de respirar, após
dias de febre e dores no corpo. Chegou com uma equipe do Samu. A coleta para a
testagem do coronavírus foi feita na porta do hospital, quando ele ainda estava
na ambulância. Mysleid, o tempo todo ao lado de Djalma.
“Internaram logo ele.
Foi a última vez que vi meu marido vivo”, conta. No dia seguinte, no sábado, já
na UTI, o motorista foi entubado. Dois dias depois, na segunda-feira (20),
teve uma parada cardíaca e não resistiu.
Mysleid conversou com o JC na noite da última
quarta-feira, no dia seguinte ao enterro do marido. Ainda sem chão, sofria por
não ter conseguido sequer despedir-se, nem mesmo depois da morte. “Eu nem pude
vê-lo. Esse vírus não mata só a pessoa. Mata a família, os amigos. Ele foi
enterrado num saco branco, tive que ficar de longe no sepultamento.” Quando
fala do marido, ela lembra a paixão dele pelo Sport Club do Recife e o gosto
pelas rodas de samba. “Ele adorava tocar, gostava de música, amava a vida.”
Djalma era motorista de aplicativo há dois anos. Entrou
na atividade depois de ficar desempregado. Já tinha conquistado uma lista
grande de clientes fixos e isso era um motivo de orgulho para ele e a esposa.
“As mães confiavam nele para levar os filhos na escola, no médico. Era uma
pessoa muito boa, trabalhadora. Fazia amizade com todos os clientes.” Quando a
pandemia começou a somar vítimas, ele ficou extremamente preocupado. Pensou em
deixar de rodar, mas dependia das corridas para sustentar a família. “Como a
gente ia fazer para comer? Pagar o aluguel? Ele estava tomando todas as
precauções, usando álcool em gel no carro. Estava seguro de que nunca ia pegar
esse vírus”, conta.
Uma semana antes de ser internado na UTI, Djalma
começou a sentir febre alta. Peregrinou por UPAs lotadas. Após horas de espera,
era medicado e sempre mandado de volta para casa. Chegou a pagar consulta
particular, quando o quadro se agravou muito. “É uma dor sem fim. Acreditem.
Essa doença é terrível. Ela destrói a pessoa. Meu marido era forte, saudável,
um homem de muita garra. Lutou muito para continuar vivendo.”
102 anos
de muito amor e apego à vida
Lenira Sales de Azevedo e Silva sempre gostou de ler.
Lia o jornal todos os dias, deitada na rede, sem precisar de óculos, como fazia
questão de ressaltar. Gostava também de escrever. Aos 100 anos, publicou seu
primeiro e único livro, contando a história de sua família. Já tinha essa
idade, quando pegou a estrada para votar na eleição para presidente da
República, em 2018. Moradora do Recife, foi aplaudida na sessão eleitoral onde
votava, em Bezerros, sua cidade natal, no Agreste do Estado.
“Fizeram questão
de fazer fotos com ela”, conta, orgulhosa, a filha Ana d’Azevedo, 62. Vovó
Lenira ou Tia Lenira, como sempre a chamavam, tinha uma saúde perfeita. “O
coração dela era melhor do que o de muito jovem de 20 anos”, emenda a
filha. No dia 13 de abril, a vitalidade e a energia de uma vida inteira
perderam a batalha para o coronavírus. Dona Lenira havia completado 102 anos,
exatamente um mês antes.
A contaminação, a família acredita, ocorreu no
hospital. É que cerca de dez dias após o aniversário, ela levou uma queda,
enquanto separava o lixo reciclável de casa. Quebrou o fêmur e precisou passar
por uma cirurgia. A operação foi um sucesso. Voltou para casa disposta e com
boa recuperação. A preocupação surgiu quando ela começou a dar sinais de
indisposição, sem vontade de ler o jornal de todo dia. Quando a família decidiu
levá-la para o hospital, a recuperação já foi mais lenta, ela terminou sendo
transferida de unidade e logo em seguida foi para a UTI. “Os médicos acharam
que podia ser o vírus. A partir do momento que coletaram amostra para o exame,
não pude mais visitá-la”, conta o neto João Paulo.
Guerreira, dona Lenira resistiu por nove dias. “Ela não
melhorava, mas também não piorava. Isso nos enchia de esperança. Porque ela
sempre foi muito apegada à vida. Se não fosse o vírus, teria vivido mais uns
bons anos”, diz João Paulo. A despedida marcou o neto profundamente.
“Foram só quatro familiares no sepultamento. Isso foi o pior. Pelo tanto que
ela era querida, foi um enterro muito solitário. Ela era uma mulher de muita
religiosidade. Se fosse em outro momento, dezenas de pessoas estariam lá para
prestar as homenagens que ela tanto merecia.”
Fonte:
JCNE10
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