sábado, 4 de abril de 2020

AS MULHERES E A PANDEMIA – UMA REFLEXÃO SOBRE A VIOLENCIA, POR CAMILA KOENIGSTEIN




Nos últimos meses o mundo vem sentido o impacto da pandemia gerada pelo COVID-19. Tal enfermidade gerou estado de caos em alguns países europeus levando à morte centenas de pessoas. As estatísticas apontam que até o momento há cerca de 40 mil mortos pelo vírus em todo mundo, mais uma quantidade inestimável de infectados. 

Tal cenário alarmante tem provocado sérias medidas restritivas de convívio social, impossibilitando a circulação de cidadãos em quase todos os países. 
Como forma de contenção, a quarentena, método antigo utilizado há séculos, surgiu como meio para diminuir as contaminações e o aumento de circulação do vírus, principalmente pela letalidade em pessoas com doenças pré-existentes ou idade acima dos sessenta anos, o que denominaram grupo de risco. 

Tal cenário modificou a vida pública e privada como há muito não era visto. 
Mas, se por um lado a pandemia mostrou as falhas no sistema de saúde em quase todos os países, expondo a ineficiência do Estado em gerir uma crise de tamanha dimensão, por outro iluminou a realidade da vida privada, mostrando o pesadelo que milhares de mulheres e crianças que, embora vivam diferentes realidades são atingidas pelo mesmo problema: a violência.  

Na América há uma ascensão de mortes alarmantes, só na Argentina, nos  dez primeiros dias de quarentena foram registrados doze feminicídios, tal número não é um caso isolado dentro do continente, que já apresenta um aumento assustador de assassinatos. 

Segundo María-Noel Vaeza,directora regional de ONU para las Américas y el Caribe asegura que “el hecho de que el hombre no tenga acceso a fuentes de trabajo, tenga mayores frustraciones por el hecho de no poder proveer para su familia y carezca de distracciones como el deporte, va a aumentar la violencia doméstica”.

Tal frase aponta que na ausência de “distrações”, a mulher é o primeiro alvo de violência, mostrando o caráter desumano de entidades vinculadas aos organismos de poder. 

Temos a impressão que desconhecem o tema, utilizando frases estereotipadas e ineficientes para compreender a complexidade do assunto. 

Mas, embora existam posições inadequadas como essa relatada, há diversas organizações voltadas para a proteção às mulheres que já sabiam da realidade da vida doméstica, ou seja:  o lar é o lugar mais violento e perigoso para as mulheres. 

As mortes geralmente ocorrem pelas mãos dos companheiros, ex companheiros ou familiares próximos e mostra como a sociedade já naturalizou os índices absurdos, o que podemos exemplificar com o caso argentino,onde o número de assassinatos femininos supera o número de mortes causados pelo COVID-19.

Frente a uma crise sanitária, vemos um ruído baixo sobre os casos recentes. 

No dia 31, mulheres bateram panelas desde suas janelas e sacadas, em um ato para chamar atenção dos cidadãos para um problema que parece longe de ser solucionado. 
O fenômeno dos homens dentro de casa como causadores da violência sofrida por mulheres já não podem ser negados, é realidade. 

Diante disso o Estado argentino tomou uma série de medidas paliativas como tentativa de contenção  dos feminicídios, tentativas essas infantilizadas, que excluem mulheres que vivem em zonas mais afastadas, ou simplesmente não conseguem sair de casa para pedir ajuda. 

O uso do número 144, mais a medida organizada juntamente com a Confederación Farmacéutica Argentina (COFA) determinam que mulheres podem pedir nas farmácias um pano vermelho como sinal de alerta da violência sofrida dentro de suas residências. 

A medida se mostra inviável, pois as mesmas são obrigadas a retornar aos seus lares, e os perpetradores seguem no recinto, o retorno pode ocorrer por medo, os filhos que ali estão, ou a dependência econômica ou afetiva.

Visto desde a perspectiva hetero/patriarcal a casa é propriedade masculina, conjuntamente com a mulher e os filhos que ali habitam, portanto, pedir “ajuda” em uma farmácia, não parece algo fácil de fazer quando o medo de sair desse local predomina. 

Segundo a antropóloga Rita Segato os feminicídios são crimes de poder, poder sobre o corpo das mulheres, que seriam como territórios masculinos. Assim, o aumento da violência expõe ainda mais essa lógica bastante vinculada ao capitalismo, que fazem das mulheres propriedades, tal como a casa, sendo assim, os homens podem fazer o que bem entenderem com seus corpos, já então desprovidos de humanidade, mas coisificados pelo direito ao uso para o que bem entenderem. 

Rita, ainda aponta que a espetacularização dos crimes de forma indiscriminada e irresponsável,  vem auxiliando no aumento de casos, justamente pela impunidade cada vez mais evidente. 

Dessa soma há variáveis que aumentam tal realidade, como: alcoolismo, drogas, transtornos, mais a negação em lidar com um modelo de mulher atual, que não atende mais às demandas impostas pelos homens outrora.  

Nesse sentido, o Estado, forjado dentro da mesma lógica patriarcal, nada mais é que o sustentáculo de todo esse sistema, o que facilita o entendimento da inabilidade e desprezo dado frente às mortes incessantes. 

Pedir ao Estado proteção seria seguir abraçada com o inimigo, então o que nos resta? Essa é a pergunta que há décadas fazemos, no entanto, sabemos que possivelmente a solução não virá pelas mãos dos governos, o que nos leva a refletir sobre as possibilidades que sobram. 

Agora, frente a crise causada pela pandemia, que seguramente irá diminuir com o tempo, pois atinge todo o corpo social, como seguirá a vergonha do continente com todas esses feminicídios? Qual será a postura do governo argentino recém eleito, denominado progressista, mas que segue a lógica de gestão no que tange às mulheres semelhante aos demais países regidos por líderes conservadores, retrógrados e machistas? Qual será a resposta de Alberto Fernandez após o fim da quarentena para os familiares dessas mulheres? Qual explicação receberá a massa feminina cansada de sair nas ruas e gritar cada vez mais forte que estamos presentes pelas mortas e que lutamos dentro do território domiciliar e social para sobreviver a todo tipo de violência? 

Somos a força bruta que faz a maquinaria social seguir. Mães, filhas, trabalhadoras, autônomas, donas de casa, estudantes, somos aquilo que a sociedade nega ver como cidadãs, mas que move absolutamente tudo. 

“Las mujeres constituyen la mayoría de los trabajadores en el sector de servicios sociales y de salud: 70% en 104 países analizados por la Organización Mundial de la Salud (OMS)”

Mas, não somos sequer donas dos nossos corpos, pois há um Estado regulador que todavia não nos concedeu o direito de decidir seguir ou não com uma gravidez, mesmo que esse Estado não forneça a posteriori nenhum apoio.

O fim da pandemia pode tardar mais alguns meses, o que nos perguntamos como mulheres latino-americanas é até quando viveremos sob o signo do medo e da indiferença que domina nossas vidas? Até quando traumas, dores, cansaço e medo seguiram fazendo parte do nosso cotidiano?

Ainda que um dia o Estado e a sociedade reconheçam os abusos cometidos por séculos não haverá perdão,  indenização, e alterações suficientes para esquecer tudo que estamos vivendo dentro desse cenário caótico de enfermidade, mortes e violência. 

Camila Koenigstein – Graduada em História, pela Pontificia Universidade Católica-SP e pós graduada em Sociopsicologia pela Fundação de Sociologia e Politica- SP. Atualmente faz Mestrado em  Ciências Sociais, com enfase em América Latina, pela Universidade de Buenos Aires (UBA).

Fontes: 



SEGATO, Rita. Contra pedagogías de la crueldad. Buenos Aires, Argentina. Editorial Prometeo. 2018. 

Fonte: Jornal GGN

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