O coronavírus já
inspira a liturgia da guerra em vários países. Macron foi enfático quanto ao
inimigo invisível. Trump invocou ato de produção de defesa civil para garantir
álcool gel e máscaras em escala militar. Merkel qualifica o vírus como o maior
desafio da Alemanha desde a 2ª Guerra Mundial. Mas por aqui, na terra dos
governantes de mente plana, a guerra é contra a ciência e as evidências
exponencialmente confirmatórias. Os profissionais de saúde alertam que dados
estão sendo falseados ou encobertos e que é iminente a catástrofe que devastará
a vida de milhares de pessoas, em especial dos mais frágeis e dos socialmente
mais vulneráveis.
É claro que o vírus
acéfalo, que veio de avião e frequentou as colunas sociais nas festas e
casamentos de famosos, já se espalhou nas comunidades carentes. E não foi por
acaso que uma das primeiras mortes tenha sido a da empregada de 63 anos que
cuidava dos patrões em quarentena na zona sul do Rio de Janeiro, um casal recém
chegado da Itália e que passa bem.
Zizek, um dos
primeiros intelectuais a opinar em meio à crise, tem insistido no argumento de
que “estamos todos no mesmo barco”, de que saídas individuais não resolverão e
que estamos diante da oportunidade de um “novo comum”, uma mudança ética que
possa resgatar a racionalidade humana para salvar vidas. Mas talvez o filósofo
esloveno, comovido pela solidariedade de outros países à Itália, mude de ideia
ao conhecer a evolução do coronavírus no Brasil, onde a concentração de renda e
de privilégios é extrema e que, por força dos golpes e das guerras híbridas,
vem sendo governado por um bando de loucos violentos.
No Brasil das
mentes planas, o governo e também a mídia classista, devidamente higienizada
com álcool gel, ignoram a escala discriminatória dos efeitos desta guerra.
Talvez achem que a circulação no barco de que fala Zizek possa ser feita com as
pulseiras fosforescentes de acesso privilegiado, como estas que são usadas nos
cruzeiros de luxo e festas de bacanas, evitando a entrada do vírus nos andares
superiores. Nos porões do Brasil, mesmo com um programa de assistência única de
saúde que pode ser considerado um exemplo para o mundo, estarão as vítimas mais
numerosas, como já previnem os especialistas. No porão também está a multidão
prisional, que já é grandemente formada por mortos-vivos, mas isso também faz
parte da guerra.
Se é guerra,
identifiquemos o inimigo e suas armas. E evoquemos a legislação com a mesma
licença analógica dos dirigentes europeus, adaptando os tipos de crime às
condutas a partir dos efeitos mórbidos. Se álcool gel é arma contra o vírus das
multidões, qual será a arma contra um governo terraplanista que nega a
gravidade da doença? Negar, sonegar, deixar de prover recursos para a saúde,
não informar, desinformar, mentir e aplicar a perversidade das fake news contra
as vidas humanas.
Que tipo de novo crime é esse? Como qualificar os agravantes
místicos das teorias conspiratórias e a responsabilidade de religiosos
oportunistas no descarrilar da pandemia no Brasil?
O que Bolsonaro faz
é lesa humanidade ou é diretamente genocídio? Sim, porque a única dúvida seria
a de como enquadrar “tecnicamente” a atitude do capitão aos marcos do direito
internacional, um exercício teórico relativamente inútil, já que os mortos, em
proporção bélica, logo estarão na superfície.
Talvez Olavo de
Carvalho, após estimular as multidões a comparecerem às ruas no dia 15 de
março, tenha gostado de pensar, sugerindo ser coisa de Bill Gates, que o
coronavírus foi criado para reduzir a população. Eis algo que pode inspirar os
sonhos distópicos dessa gente: inocular no coronavírus a aporofobia que
contamina as relações sociais no Brasil e no mundo, pulseirar o vírus com o
ódio aos indigentes e restringi-lo aos porões de parasitas, em especial os
pobres idosos, numa versão brasileira do filme de Bong Joon Ho.
Neste mesmo bairro
da zona sul onde trabalhava a cuidadora do casal em quarentena, as panelas
bateram com força nessa quarta-feira, acompanhadas de gritos de “louco”,
“miliciano” e “assassino”. Já é um começo, mas o tom deverá subir quando ficar
evidente que Presidente da República é um aliado do coronavírus e que o
comportamento governamental é criminoso diante de um novo tipo de guerra
internacionalmente considerada.
Carol Proner – Doutora em Direito Internacional,
membro-fundadora da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia).
Fonte: Jornal GGN
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