A famigerada reunião ministerial de 22 de abril de 2020
do governo Bolsonaro, que mais se assemelhava a um encontro de uma facção
criminosa, sob o olhar prevaricoso e complacente do então superministro da
Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Fernando Moro, revelou com nitidez o
tamanho do desleixo com a população brasileira, sobretudo, a parcela mais
vulnerável socialmente. Indiferentes e alheios à liturgia dos cargos que
ocupam, o presidente e os ministros da res publica tupiniquim
apequenam cada vez mais o Brasil, um pária internacional.
Os jornalões representantes
dos grupos empresariais jornalísticos, outrora ativos no golpe de 2016, agora
clamam por democracia! Didática e convenientemente procuram trazer à baila a
recente história do Brasil (como é o caso do jornal Folha de S. Paulo),
quando ingressamos num longo inverno ditatorial que se iniciou em 1964 e se
estendeu até 1985. Porém, nos últimos anos, quando a pauta era essencialmente
econômica e prejudicial à classe trabalhadora, os grupos empresariais
jornalísticos simplesmente se isentaram e se calaram. Ora, a desconexão da
pauta econômica coordenada pelo especulador Guedes alinhada ao autoritarismo e
medidas de exceção dos oficiais de pijama do governo do capitão reformado do
Exército são dois lados de uma mesma moeda! A democracia liberal foi jugulada e
as instituições públicas que deveriam zelar, minimamente, pela justiça social
foram completamente partidarizadas.
O historiador estadunidense, Timothy (Tim) Snyder,
entende que a servidão voluntária alimentou regimes totalitários tais como o
fascismo e o nazismo na Itália e na Alemanha, respectivamente, e de que um dos
projetos dos regimes totalitários ou tirânicos é repetir ad nauseam as
mesmas palavras e frases que aparecem nos meios de comunicação diários, para
que sejam aceitas em detrimento de um quadro referencial maior. Em suas
palavras, ignorar o mundo real dá início à criação de um antimundo
ficcional. Os memes, a autoverdade, a auto-referência e uma campanha
eleitoral subterrânea construída por meio das fake news nas redes
sociais, foram a tônica do processo eleitoral no Brasil em 2018 e por isso se
associa o bolsonarismo às denominadas guerras híbridas. Snyder nos
convida a combater a política da inevitabilidade, que impõe à humanidade a
inércia e o desconhecimento da História, assim como o combate à política
da eternidade, calcada em reducionismos e maniqueísmos políticos; sua aposta
reside nas novas gerações entendendo que os sujeitos históricos posicionados em
favor da emancipação humana têm muita responsabilidade nestes tempos de
desconforto e até mesmo de apatia coletiva.
A barbárie e o obscurantismo institucionalizados
ganham, assim, corpo nesse território tão vasto, desigual e desprovido de
civilidade. Trata-se do Brasil profundo. Estamos diante de
constatações nefastas: são os impérios neopentecostais que determinam,
hodiernamente, em quem os fiéis devem votar; são os movimentos
ultraconservadores que se intitulam como sem partido, defensores da moral
e dos bons costumes das pessoas de bem, que perseguem professores e
professoras das escolas de Educação Básica e universidades públicas, acusados
sistematicamente de doutrinadores. Karl Marx (1818-1883) em o 18 brumário
de Luis Bonaparte afirmou que a história se repete primeiramente
como tragédia e, posteriormente, como farsa. Contudo, podemos
afirmar ainda que se a história não se repete tal e qual em diferentes
contextos históricos, ela pode nos ensinar a não reprisarmos situações que
coloquem em risco a humanidade.
Num país tão desigual como o Brasil, os falsos mitos
podem ser construídos em contextos assim, ou seja, aparentemente inspiram
vontades populares, tais como o combate à violência, à corrupção, à
delinquência juvenil, etc.. Todavia, os germens da tirania defendidos por esses
sujeitos afeitos a um instinto primitivo apenas conseguem trazer à tona
recalques e valores morais duvidosos untados por pastores ligados aos impérios
neopentecostais. Durante o certame eleitoral no Brasil em 2018, muitas pessoas
se sentiram à vontade para espancar e até mesmo assassinar quem não concordasse
com as suas ideias e/ou concepções de mundo. Um dos aforismos do historiador
estadunidense Timothy Snyder é, justamente, sobre isso: a maior parte do
autoritarismo é concedida voluntariamente e toda obediência por antecipação é
uma tragédia política. É salutar recordar que a obediência por antecipação
gerou na Alemanha nazista um séquito de voluntários servis, que criaram as suas
próprias milícias à revelia do regime hitlerista. A flexibilização do uso de
armas de fogo no Brasil pode facilitar o acesso dessas milícias a todo e
qualquer arsenal bélico com a chancela da presidência da República.
Diante da pandemia acarretada pela Covid-19 que matou
dezenas de milhares de brasileiros, o que se viu do governo Bolsonaro foi o
ataque aos serviços públicos e à ciência. Negacionismo e anticientificismo
caminhando de mãos dadas! A Emenda Constitucional nº 95/16, que congelou investimentos
em saúde, educação e infraestrutura durante 20 anos, aprovada no governo
golpista de Temer, cobra agora o seu alto preço em vidas humanas. O
empresariado bolsonarista também tem a sua elevada dose de responsabilidade. Se
levarmos em consideração o contexto histórico do nazifascismo na Europa das
décadas de 1930 e 1940, identificaremos que determinadas propriedades
comerciais, segundo análise de Snyder, receberam marcas étnicas, e isso
transformou a ética dos cidadãos: se as lojas podiam ser judias, o que
dizer de outras empresas e propriedades? O desejo de que os judeus
desaparecessem, talvez num primeiro momento reprimido, foi crescendo à medida
que a cobiça fermentava. No caso brasileiro, o empresariado de grande
capital coligado com o bolsonarismo – sempre em busca da extração da mais-valia
seja em que conjuntura for – não se importa com os trabalhadores informais,
pequenos e médios comerciantes, muitos menos com aqueles que só podem vender a
sua força de trabalho. Está na contabilidade do grande capital a morte
(evitável) de milhares de trabalhadores. Os grupos empresariais jornalísticos
quando agem como meros assessores de imprensa e ao não se indisporem com os
achaques presidenciais e a alienação em larga escala, também prestam um
desserviço.
A criminalização dos movimentos sociais, o combate ao
comunismo e aos partidos de esquerda são temas recorrentes no governo do
capitão reformado do exército. Para os incautos ou para os que,
deliberadamente, agem de má-fé, repressão é sinônimo de segurança pública; ou
ainda: o saudosismo verde-oliva da ditadura civil-empresarial-militar
(1964-1985) teria gerado em mentes insanas a ideia de que havia um país livre
da corrupção e dos desmandos, ainda que fontes documentais e as evidências
históricas nos demonstrem como os índices sociais, educacionais e econômicos
foram dramáticos durante e ao fim da ditadura. Não há nada que nos alente em
relação ao combate à corrupção, muito menos no que tange às políticas públicas
de inclusão social no Brasil bolsonarista. A violência indiscriminada em
relação às mulheres, aos negros, aos povos originários e à comunidade LGBTQI+
vêm crescendo de maneira assustadora no Brasil. Para Snyder, para que a
violência transforme não só o clima político como também o sistema, as emoções
dos comícios e a ideologia de exclusão precisam ser incorporadas ao treinamento
de guardas armados. Esses guardas primeiro desafiam a polícia e as Forças
Armadas, depois se infiltram nessas organizações e por fim as transformam.
Sobre a ascensão das religiões neopentecostais no
Brasil, o binômio política/religião se tornou uma mistura explosiva num país em
que quem tem definido as regras do jogo político são as bancadas da Bíblia,
do Agronegócio e das Armas no Congresso Nacional. Mas não
basta tomar o poder. A direita orgulhosa, religiosa e conservadora
homenageiam torturadores em carros de som nas grandes avenidas, como bem
assinala a jornalista Andrea Dip. Orgulham-se, portanto, de sua
ignorância; polemizam e provocam especialmente partidários e simpatizantes da
esquerda. Não têm medo de serem punidos. Estão do lado das pessoas de bem. Os
temas de cunho moral são os que unificam os parlamentares evangélicos,
independentemente de partido. Como são avessos aos argumentos, às evidências, à
ciência sistematizada, são barulhentos, intempestivos, aguerridos,
beligerantes, e esse barulho cria a impressão de volume, de quantidade de
poder, de coesão. (…) é uma estratégia de parecer maior do que é, pelo grito –
como acontece nas próprias igrejas. As Igrejas têm esse discurso de guerra, de
combate, segundo Dip. Mas as alianças dos evangélicos com o grande capital
também são evidentes. Não por acaso a bancada BBB (Bíblia/Bala/Boi) vota em
bloco em qualquer situação!
Tais igrejas evangélicas detêm 1/3 das concessões de
televisão no Brasil. Angariam simpatizantes nas periferias e nos presídios,
sujeitos historicamente esquecidos pelo poder público. Essas igrejas estimulam
o empreendedorismo, dado o esvaziamento de soluções coletivas e o trabalho
formal com carteira assinada, produzindo um caldo de direitização jamais visto.
Tragicamente, de acordo com os estudos de Dip, os neopentecostais
tornaram-se personagens de um processo sem precedentes no país, com
plataformas baseadas na retórica do terror (‘querem acabar com a família’),
pelo impedimento da garantia de direitos sexuais e reprodutivos e das ações de
superação da violência de gênero. O que se desenha, como vemos, pouco ou nada
tem a ver com a defesa das famílias. Acaba por ser uma armadilha
(instrumentalização) de grupos políticos para quem professa uma fé. Há
mais de 1.500 denominações evangélicas no Brasil. Estrategicamente, o plano das
lideranças dessas Igrejas é ocupar cargos executivos e o Judiciário, para
barrar as pautas relacionadas aos direitos reprodutivos das mulheres e à
comunidade LGBTQI+.
Para o historiador Tim Snyder devemos fazer um grande
esforço e nos afastarmos da internet e lermos mais livros. No que tange à mídia
hegemônica, o historiador afirma que tudo acontece depressa, mas nada
acontece de verdade (…), somos atingidos por uma onda atrás da outra, mas nunca
vemos o oceano. De fato, no emaranhado dos noticiosos diários, quantos são
capazes de compreender as sutilezas ou armadilhas presentes em cada matéria da
pauta jornalística? Ver notícias na televisão às vezes equivale a pouco
mais do que olhar para uma pessoa que também está olhando para uma imagem.
Consideramos esse transe coletivo uma coisa normal. Caímos nele lentamente.
Por fim, os recuos da teoria e da política no governo
Bolsonaro são propositais, pois ciência e a politização de qualquer tema social
geram contradições fundamentais. Diante das contradições, o governo que aí está
só consegue responder com a repressão, haja vista suas alianças de classe.
Aliás, como esquecermos a metralha de 80 balas disparadas contra uma família
negra num país que se mostra, diuturnamente, tão desigual, racista, misógino e
recalcado? Fora outras violências cometidas pela polícia contra as populações
negras e pobres desse país. O misticismo obscurantista aliado à barbárie
institucionalizada compromete avanços sociais, científicos e
educativo-formativos. Nossas preocupações deveriam ser outras, mas mesmo os
grupos empresariais jornalísticos começam a entender (ainda que tardiamente)
que devem pautar também a história recente do país, uma história de golpes,
ditadura, violação dos direitos humanos, censura à imprensa, etc.
Jéferson
Silveira Dantas – Professor vinculado ao CED/UFSC e ao Observatório de
Ética Jornalística (objETHOS).
Fonte:
Jornal GGN
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