sexta-feira, 10 de julho de 2020

BRASIL PRECISA ACABAR COM A REELEIÇÃO PARA PRESIDENTE DA REPÚBLICA, POR ÁLVARO MIRANDA




Podemos procurar e encontrar nas nossas pesquisas e reflexões diferente motivos para defender ou não o fim da reeleição para presidente da República. Mas, propondo o seu fim, restrinjo-me ao que penso ser o cerne do problema, vale dizer, a transitividade do voto. Aparentemente óbvia, mas a pergunta necessária é a seguinte: como traduzir o nosso voto e políticas públicas?

E a obviedade se desvanece quando pensamos na necessidade de impedir que a democracia seja reduzida a algo a ser vivido somente no momento das urnas, de quatro em quatro anos. Muitos esquecem que democracia, por seu caráter aberto, é um processo contínuo e permanente de participação, conflitos, pressões, negociações e mobilizações, numa dinâmica que ocorre dentro e fora da máquina pública. Reduzir a democracia às urnas é conferir a ela um caráter demiúrgico, quando não messiânico, esperando que um político ou um partido possa dar conta dos problemas.

Como já disse em outros textos, a reeleição nunca fez parte da nossa tradição republicana centenária, tendo sido instituída durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, na década de 1990. Nem os governos da ditadura civil-militar (1964-1984) eram reconduzidos ao fim do período de cada administração, numa situação singular de ditadura de “alternância”, diferentemente de regimes similares da América do Sul, a exemplo de Augusto Pinochet, no Chile, ou Alfredo Stroessner, no Paraguai.

Não se trata apenas da “alternância” em abstrato no poder. Cada formação social sabe onde o calo dói. Não existe também democracia em abstrato, como sistema ideal que funciona para todos os países da mesma maneira. Não se exporta nem se importa modelos democráticos, a não ser como farsa ou um tipo contemporâneo de colonização ou protetorado.

Se uma das vantagens imaginadas da reeleição pode ser a realização e continuidade de programas de políticas de longo prazo, seus dilemas podem ocorrer, por outro lado, na permanência de vícios, enraizamentos de problemas, privilégios e cacoetes. Isso, para não dizer sobre a tendência à criação de condições mais facilitadoras ou convidativas de corrupção e clientelismo. A delegação dada pelo voto pode criar, em uns e outros, a predisposição para o desprezo dos órgãos fiscalizadores ou dos opositores.  Para não dizer também no caráter de correia de transmissão de valores exógenos a fim de atender a interesses conjunturais do capital.

Ora, continuidade de programas não pode depender de políticos, nem de partidos, mas sim de mecanismos institucionalizados que garantam, justamente, de forma articulada, tanto a alternância no poder como a longevidade das ações de governos – longevidade, essa aliás, sendo elemento nuclear da noção de política pública. Ou interrupção de políticas, se a sociedade assim desejar.

Uma das características mudas e sorrateiras do capitalismo é seu permanente estado de exceção a fim de atender a interesses ad hoc extraterritoriais. A nova ordem mundial do neoliberalismo e do ultraliberalismo é a desordem aqui e ali, dependendo das forças em jogo. É o tal “vendaval perene de destruição criativa”, conforme a célebre frase de Joseph Schumpeter. Contraditoriamente, esse estado de exceção depende, não raras vezes, da continuidade de governos (ou descontinuidade através de golpes), mas não, necessariamente, da continuidade ou mudança de políticas.

Possível objeção ao meu argumento seria o de que a proibição de nada valeria pois não impediria que o mandatário do momento fizesse tudo, e com êxito, para emplacar alguém do seu partido como sucessor, garantindo, assim, a “reeleição” do seu grupo político. Ora, o processo político é errático e não resultado futuro de equações seguras previamente estabelecidas no passado. Ainda que o sucessor seja do mesmo partido, indivíduos agem em conjunturas diferentes com mais ou menos recursos em novos conflitos. Correligionários, ou mesmo parentes e amigos surpreendem na hora de atender ou não às expectativas tanto dos seus eleitores como também de quem os indicou ou preparou para essa ou aquela situação.

Os exemplos, mesmo de forma abstrata, são notórios, coma a própria trajetória dos governos do PT, de 2003 a 2016. Se o mesmo partido permaneceu no governo, o que aconteceu em 2015? Que desarranjos ocorreram, a partir daquele momento, se era o mesmo partido? O imponderável também deve ser considerado, tanto mais porque, em qualquer país, governos agem conforme a dinâmica dos conflitos de classes das crises do sistema capitalista – e não apenas por uma vontade de querer fazer e supor que vai conseguir realizar dentro de seu período de administração.

O fim da reeleição iria exigir mobilização constante da sociedade justamente para garantir continuidade ou mudança de políticas de forma mais efetiva. Só ingênuos não sabem que, tão logo assumem, políticos já pensam, desde o início, em sua reeleição. A prioridade fica sendo a reeleição e não as políticas, embora estas é que vão credenciá-los para pretender o retorno ao poder. Em vez de maior mobilização de grupos para a reeleição, o fim da recondução exigiria mobilização permanente da sociedade durante a realização das políticas.

Àqueles que temem a suposta “instabilidade” da democracia e, portanto das próprias políticas públicas, observo que essa dinâmica é inerente ao regime democrático – e que na verdade, muitas vezes, esse temor esconde certa repulsa à democracia com argumentos que defendem “formalidades” supostamente garantidoras de uma normalidade.

Dou aqui um exemplo sugestivo que muitos desconhecem. Chega a ser bilionário no Brasil o montante “economizado’, melhor dizendo, não gasto, com editais de licitações que o poder público desiste de tocar para frente diante da fiscalização dos tribunais de contas. Resumindo: quando esses órgãos de fiscalização apontam problemas ou mandam os entes corrigirem os editais, estes são revogados pela própria administração.

Como assim? Ao revogarem os editais colocados na praça, a administração está frustrando não só a expectativa de eventuais licitantes para fornecer produtos ou realizar serviços diversos, mas também a expectativa da própria população. 

Determinado objeto foi licitado, mas não foi para a frente. Então não era necessária a construção da ponte, da estação de tratamento de esgoto, ou de determinado equipamento urbano, a desobstrução de um canal ou rio, a construção de um hospital ou de uma escola?

Outro exemplo: ao fim do exercício fiscal (dentro do período do mandato), muitos entes “devolvem” ao tesouro o que, embora previsto no orçamento, não conseguiram ou não quiseram gastar por motivos diversos. E, depois, os responsáveis pela “inação” dão entrevista dizendo que “economizaram”. Como assim? Primeiro: não se trata de devolução de recursos, uma vez que estes não serão “somados” ao orçamento do exercício seguinte, que será elaborado conforme estimativa de receitas e despesas para o futuro. Segundo: não gastou por quê, se estava previsto no orçamento?

Interessante lembrar que a reeleição foi instituída no Brasil no vendaval do neoliberalismo da década de 1990 com seus mantras de eficiência, eficácia, efetividade e economicidade que nos sugerem a seguinte indagação: para ser eficiente, eficaz, efetivo e econômico nas políticas públicas (ou mais célere) o governo precisa de oito e não quatro anos?

Sei que o tema agora é controverso e tornou muitos políticos refratários ao debate. Simplesmente porque o hábito do cachimbo entorta a boca, como bem sabemos. Até porque também o fim da reeleição seria pensada também para outros mandatos eletivos. No caso dos políticos com mandato no Poder Legislativo, poderíamos pensar então em um teto de reeleições, duas ou três, talvez, ou quarentenas, a fim de impedir que o parlamentar transforme seu gabinete num escritório privado.

Não tem sentido algum o político ir para a televisão e encher a boca para dizer que está no seu décimo mandato. Quer fazer política a vida toda? Sai do parlamento, após seus mandatos, e continua no partido, no movimento social, nas escolas, nas associações, nas igrejas, nos centros de estudos e em outras arenas da sociedade civil. Menos que desapreço pela política ou pelos políticos, o fim da reeleição seria, ao contrário, o enobrecimento da atividade política como meio cujo fim é o ser humano, a coletividade, e não grupos ou governos.

Fonte: Jornal GGN

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