Podemos procurar e encontrar nas nossas pesquisas e reflexões
diferente motivos para defender ou não o fim da reeleição para presidente da
República. Mas, propondo o seu fim, restrinjo-me ao que penso ser o cerne do
problema, vale dizer, a transitividade do voto. Aparentemente óbvia, mas a
pergunta necessária é a seguinte: como traduzir o nosso voto e políticas
públicas?
E a obviedade se desvanece quando pensamos na
necessidade de impedir que a democracia seja reduzida a algo a ser vivido
somente no momento das urnas, de quatro em quatro anos. Muitos esquecem que
democracia, por seu caráter aberto, é um processo contínuo e permanente de
participação, conflitos, pressões, negociações e mobilizações, numa dinâmica
que ocorre dentro e fora da máquina pública. Reduzir a democracia às urnas é
conferir a ela um caráter demiúrgico, quando não messiânico, esperando que um
político ou um partido possa dar conta dos problemas.
Como já disse em outros textos, a reeleição nunca fez
parte da nossa tradição republicana centenária, tendo sido instituída durante o
governo de Fernando Henrique Cardoso, na década de 1990. Nem os governos da
ditadura civil-militar (1964-1984) eram reconduzidos ao fim do período de cada
administração, numa situação singular de ditadura de “alternância”,
diferentemente de regimes similares da América do Sul, a exemplo de Augusto
Pinochet, no Chile, ou Alfredo Stroessner, no Paraguai.
Não se trata apenas da “alternância” em abstrato no
poder. Cada formação social sabe onde o calo dói. Não existe também democracia
em abstrato, como sistema ideal que funciona para todos os países da mesma
maneira. Não se exporta nem se importa modelos democráticos, a não ser como
farsa ou um tipo contemporâneo de colonização ou protetorado.
Se uma das vantagens imaginadas da reeleição pode ser a
realização e continuidade de programas de políticas de longo prazo, seus
dilemas podem ocorrer, por outro lado, na permanência de vícios, enraizamentos
de problemas, privilégios e cacoetes. Isso, para não dizer sobre a tendência à
criação de condições mais facilitadoras ou convidativas de corrupção e
clientelismo. A delegação dada pelo voto pode criar, em uns e outros, a
predisposição para o desprezo dos órgãos fiscalizadores ou dos
opositores. Para não dizer também no caráter de correia de transmissão de
valores exógenos a fim de atender a interesses conjunturais do capital.
Ora, continuidade de programas não pode depender de
políticos, nem de partidos, mas sim de mecanismos institucionalizados que
garantam, justamente, de forma articulada, tanto a alternância no poder como a
longevidade das ações de governos – longevidade, essa aliás, sendo elemento
nuclear da noção de política pública. Ou interrupção de políticas, se a
sociedade assim desejar.
Uma das características mudas e sorrateiras do
capitalismo é seu permanente estado de exceção a fim de atender a
interesses ad hoc extraterritoriais. A nova ordem mundial do
neoliberalismo e do ultraliberalismo é a desordem aqui e ali, dependendo das
forças em jogo. É o tal “vendaval perene de destruição criativa”, conforme a
célebre frase de Joseph Schumpeter. Contraditoriamente, esse estado de exceção
depende, não raras vezes, da continuidade de governos (ou descontinuidade
através de golpes), mas não, necessariamente, da continuidade ou mudança de
políticas.
Possível objeção ao meu argumento seria o de que a
proibição de nada valeria pois não impediria que o mandatário do momento
fizesse tudo, e com êxito, para emplacar alguém do seu partido como sucessor,
garantindo, assim, a “reeleição” do seu grupo político. Ora, o processo
político é errático e não resultado futuro de equações seguras previamente
estabelecidas no passado. Ainda que o sucessor seja do mesmo partido,
indivíduos agem em conjunturas diferentes com mais ou menos recursos em novos
conflitos. Correligionários, ou mesmo parentes e amigos surpreendem na hora de
atender ou não às expectativas tanto dos seus eleitores como também de quem os
indicou ou preparou para essa ou aquela situação.
Os exemplos, mesmo de forma abstrata, são notórios,
coma a própria trajetória dos governos do PT, de 2003 a 2016. Se o mesmo
partido permaneceu no governo, o que aconteceu em 2015? Que desarranjos
ocorreram, a partir daquele momento, se era o mesmo partido? O imponderável
também deve ser considerado, tanto mais porque, em qualquer país, governos agem
conforme a dinâmica dos conflitos de classes das crises do sistema capitalista
– e não apenas por uma vontade de querer fazer e supor que vai conseguir
realizar dentro de seu período de administração.
O fim da reeleição iria exigir mobilização constante da
sociedade justamente para garantir continuidade ou mudança de políticas de
forma mais efetiva. Só ingênuos não sabem que, tão logo assumem, políticos já
pensam, desde o início, em sua reeleição. A prioridade fica sendo a reeleição e
não as políticas, embora estas é que vão credenciá-los para pretender o retorno
ao poder. Em vez de maior mobilização de grupos para a reeleição, o fim da
recondução exigiria mobilização permanente da sociedade durante a realização
das políticas.
Àqueles que temem a suposta “instabilidade” da
democracia e, portanto das próprias políticas públicas, observo que essa
dinâmica é inerente ao regime democrático – e que na verdade, muitas vezes,
esse temor esconde certa repulsa à democracia com argumentos que defendem
“formalidades” supostamente garantidoras de uma normalidade.
Dou aqui um exemplo sugestivo que muitos desconhecem.
Chega a ser bilionário no Brasil o montante “economizado’, melhor dizendo, não
gasto, com editais de licitações que o poder público desiste de tocar para
frente diante da fiscalização dos tribunais de contas. Resumindo: quando esses
órgãos de fiscalização apontam problemas ou mandam os entes corrigirem os
editais, estes são revogados pela própria administração.
Como assim? Ao revogarem os editais colocados na praça,
a administração está frustrando não só a expectativa de eventuais licitantes
para fornecer produtos ou realizar serviços diversos, mas também a expectativa
da própria população.
Determinado objeto foi licitado, mas não foi para a
frente. Então não era necessária a construção da ponte, da estação de
tratamento de esgoto, ou de determinado equipamento urbano, a desobstrução de
um canal ou rio, a construção de um hospital ou de uma escola?
Outro exemplo: ao fim do exercício fiscal (dentro do
período do mandato), muitos entes “devolvem” ao tesouro o que, embora previsto
no orçamento, não conseguiram ou não quiseram gastar por motivos diversos. E,
depois, os responsáveis pela “inação” dão entrevista dizendo que
“economizaram”. Como assim? Primeiro: não se trata de devolução de recursos,
uma vez que estes não serão “somados” ao orçamento do exercício seguinte, que
será elaborado conforme estimativa de receitas e despesas para o futuro.
Segundo: não gastou por quê, se estava previsto no orçamento?
Interessante lembrar que a reeleição foi instituída no
Brasil no vendaval do neoliberalismo da década de 1990 com seus mantras de
eficiência, eficácia, efetividade e economicidade que nos sugerem a seguinte
indagação: para ser eficiente, eficaz, efetivo e econômico nas políticas
públicas (ou mais célere) o governo precisa de oito e não quatro anos?
Sei que o tema agora é controverso e tornou muitos
políticos refratários ao debate. Simplesmente porque o hábito do cachimbo
entorta a boca, como bem sabemos. Até porque também o fim da reeleição seria
pensada também para outros mandatos eletivos. No caso dos políticos com mandato
no Poder Legislativo, poderíamos pensar então em um teto de reeleições, duas ou
três, talvez, ou quarentenas, a fim de impedir que o parlamentar transforme seu
gabinete num escritório privado.
Não tem sentido algum o político ir para a televisão e
encher a boca para dizer que está no seu décimo mandato. Quer fazer política a
vida toda? Sai do parlamento, após seus mandatos, e continua no partido, no
movimento social, nas escolas, nas associações, nas igrejas, nos centros de
estudos e em outras arenas da sociedade civil. Menos que desapreço pela
política ou pelos políticos, o fim da reeleição seria, ao contrário, o
enobrecimento da atividade política como meio cujo fim é o ser humano, a coletividade,
e não grupos ou governos.
Fonte:
Jornal GGN
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