quarta-feira, 1 de julho de 2020

AS PRIMEIRAS PALAVRAS, POR IZAÍAS ALMADA




Entre alguns estudos, opiniões e teorias sobre obras literárias, há quem afirme que é nas primeiras páginas ou nos primeiros parágrafos, em se tratando de contos e romances, sobretudo, ou nos primeiros versos, que o autor prenderá a atenção do leitor.
Haverá sempre quem discorde dessas tais regrinhas do escrever bem, pois, em princípio, a arte é livre para se manifestar de maneiras distintas, cabendo ao autor da obra encontrar a melhor maneira de contar a sua história.

O fato é que, pessoalmente, tenho por hábito – nos tempos em que era possível ir a uma livraria – ler os primeiros parágrafos de algum livro que eventualmente me chamasse a atenção.

Como curiosidade para uma digestiva leitura anticovidiana transcrevo abaixo as primeiras palavras de cinco escritores respeitáveis, por mim escolhidos aleatoriamente, na expectativa de que possam provocar naqueles que ainda não leram as obras mencionadas, o desejo de continuarem a leitura, pois tempo não nos faltará.
São eles: Dante Alighieri, Honoré de Balzac, Lygia Fagundes Telles, Jean-Paul Sartre e Marcos Rey.

Dante Alighieri: “A Divina Comédia” – Ed. Itatiaia
Tradução de Cristiano Martins

Canto I

O poeta se surpreende numa selva escura, e dela não consegue sair, impedido por uma pantera, um leão e uma loba; subitamente, avista um vulto, a quem pede socorro, e vê tratar-se da sombra de Virgílio.

A meio do caminho desta vida
Achei-me a errar por uma selva escura
Longe da boa vida, então perdida.

4      Ah! Mostrar qual a vi é empresa dura,
Essa selva selvagem, densa e forte,
Que ao relembrá-la a mente se tortura!

7      Ela era amarga, quase como a morte!
Para falar do bem que ali achei,
De outras coisas direi, de vária sorte,

10      que me passaram. Como entrei, não sei,
Era cheio de sono aquele instante
Em que da estrada real me desviei.

13      Chegando ao pé de uma colina, adiante,
Lá onde a triste landa era acabada,
Que me enchera de horror o peito arfante,

16      Olhei para o alto e vi iluminada
A sua encosta aos raios do planeta
Que a todos mostra o rumo em cada estrada.

Honoré de Balzac: “A Comédia Humana” – Ed. Globo
         Tradução de Vidal de Oliveira

No meio da Rua São Diniz, quase na esquina da Rua do Leão, existia outrora uma dessas preciosas casas que facilitam aos historiadores a reconstrução, por analogia, da antiga Paris. Os muros ameaçadores daquele pardieiro pareciam pintalgados de hieróglifos. Que outro nome poderia dar o transeunte aos XX e VV traçados na fachada pelos caibros transversais ou diagonais delineados nos reboco por pequenas rachas paralelas? Evidentemente cada carro ao passar fazia que aquelas vigas dançassem nas mortagens. O venerável edifício tinha um telhado triangular, cujo modelo em breve não mais se verá em Paris. Abaulado pelas intempéries do clima parisiense, esse telhado sobressaia, mais ou menos, três pés sobre a rua, tanto para proteger da chuva a soleira da porta como para abrigar a parede das águas-furtadas e seu olho-de-boi sem rebordo. Esse último andar era construído com tábuas pregadas umas sobre as outras, como ardósias, decerto para não sobrecarregar aquele frágil edifício.

Por uma manhã chuvosa do mês de março, um rapaz, cuidadosamente envolto na sua capa, estava sob o telheiro da loja fronteira àquela habitação e parecia examiná-la com o entusiasmo de um arqueólogo. Realmente, aquele remanescente da burguesia do século XVI podia oferecer a um observador mais de um problema para resolver. Cada andar apresentava sua singularidade.

         Lygia Fagundes Telles – “A Preguiça” em Os Sete Pecados Capitais – Ed. Civilização Brasileira.

– A gente tem órgãos demais. E buracos. Os buracos dão trabalho, ao todo oito… – prosseguiu Gaby e não completou nem a frase nem o gesto. Uma trabalheira.
O garçom passou o guardanapo no balcão. Ficou olhando para Gaby que tomava devagarinho seu gole de uísque.

– Alga? Já ouvi falar em alga, Gaby. Mas não me lembro.

– Nas aulas de biologia eu podia ver. Divertido.

– Ouvi falar nisso, mas não lembro quase nada. Estudei pouco, Gaby. Comecei a trabalhar muito cedo.

– Divertido.

O garçom acompanhou-lhe o olhar e agora não sabia se Gaby estava se referindo ao casal que entrou. Ou àquela tal de bio. Bio o quê? Uma besta, esse daí. Por que não explicava direito as coisas? Esse costume de deixar tudo pela metade. Calmo, tudo bem. Mas aquela fala mole de Marlon Brando, ô! tipo.

– Ei Fredi! Dois martínis secos – pediu o recém-chegado depois de consultar a companheira. Ela acrescentou – E amendoins!

Fredi apanhou a garrafa na prateleira de espelhos.

Jean-Paul Sartre – “O Muro” – Livro de contos com o mesmo título – Ed. Civilização Brasileira. Trad. De H. Alcântara Silveira.

         Jogaram-nos numa grande sala branca e meus olhos começaram a piscar porque a luz os magoava.. Vi, logo depois, uma mesa e quatro sujeitos atrás dela – uns civis – examinando papéis. Tinham deixado os outros prisioneiros no fundo e precisamos atravessar a sala toda para chegar até eles. Havia muitos que eu conhecia e outros que deviam ser estrangeiros. Os dois que estavam à minha frente eram loiros e de crânios redondos e se pareciam; imaginei que fossem franceses. O menos, de nervoso, sungava as calças a todo momento.

Aquilo durou quase três horas; sentia-me apatetado e com a cabeça vazia; a sala, porém, estava bem aquecida e eu achava agradável até – há vinte e quatro horas que estávamos tremendo de frio. Os guardas conduziam os prisioneiros, um após outro, para diante da mesa. Os quatro sujeitos perguntavam-lhes então o nome e a profissão. 

Quase sempre ficavam nessas perguntas – ou então indagavam: “Tomou parte na sabotagem das munições?” “Onde estava na manhã do dia 9 e que fazia nesse dia?”        

Marcos Rey – A História do 5 Estrelas – Global Editora.

Leo apertou a campainha do 222, recebera um chamado; Logo se abria um palmo de porta mostrando a cara e o sorriso largo do Barão. Embrulhado num robe azulão, ele parecia ainda mais gordo, mole e displicente.

– Me traga os jornais de sempre – pediu o hóspede passando ao bellboy uma nota amassada.

– Esse dinheiro não vai dar, senhor.

– Tem razão. Um momento.

Quando abriu o guarda-roupa para apanhar a carteira, Leo viu pelo espelho interno do móvel que o Barão tinha companhia: um homem pequeno, com pinta de índio, vestindo roupas civilizadas, lavava concentradamente as mãos na pia do banheiro. 
Devia ser uma daquelas muitas pessoas que o Barão ajudava, pensou o rapaz.

O volumoso hóspede do 222 demorava para encontrar a carteira nos bolsos de seus paletós, enquanto o bellboy aspirava vários cheiros do apartamento: o de charutos já fumados e amanhecidos, um mais agradável de lavanda e ainda outro de maçã, sempre vendo pelo espelho o tal homenzinho a lavar as mãos e a enxugá-las em toalhas de papel que ia jogando numa cesta. Depois, com o súbito receio de ser visto pelo espelho do guarda-roupa, fechou a porta do banheiro com uma cotovelada.

Afinal o Barão reapareceu com mais dinheiro e um novo sorriso.

– O troco é seu, meu filho.
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Divirta-se, amigo leitor. O coronavírus ainda demora.

Fonte: Jornal GGN

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