domingo, 12 de julho de 2020

LIÇÕES DE JORNALISMO, POR ANTONIO LASSANCE




Era uma vez um país em que se prometia que a devastação ambiental iria abrir novas fronteiras econômicas e gerar riqueza sem igual. Nesse lugar, embustes eram anunciados como grandes negócios. Os escroques que as promoviam se passavam facilmente por Midas (transformavam qualquer pedregulho em ouro). A imprensa vendedora de “secos e molhados”, de que falava o Millôr, os exaltava.

Pequenos investidores eram enganados o tempo todo com promessas mirabolantes de ganhos fáceis na bolsa de valores, desde que acreditassem na lábia de quem se dizia um esperto bem-sucedido. O mercado de ações parecia um paraíso ao alcance de todos.
Empresas ficavam gigantes, do dia para a noite, em cima de fraudes de sonegação e lavagem de dinheiro. Depois de grandes, recebiam fartas injeções de recursos públicos e perdões de suas dívidas, sem qualquer contrapartida social.

O ministro responsável pela economia não só não se incomodava com isso como ficava irritado com quem atrapalhava a festa.

Algo parece familiar? Pois é, esse era o Brasil da ditadura. Um país que foi falido várias e várias vezes. Não quebrou. Foi quebrado.

Quebraram o Brasil de forma tão recorrente a ponto de Chico Buarque compor, em 1984, o “Vai Passar”. Em verso, Chico cantava que “dormia a nossa pátria mãe, tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações”.

Enquanto isso, alguém de olhos bem abertos atravessava madrugadas martelando uma máquina datilográfica para cravar, com bons números, boas fontes e faro jornalístico impecável, como é que se estava destruindo o Brasil.

Ao longo de décadas, esse senhor que era, além de tudo, um cozinheiro de mão-cheia, teve muitas dessas histórias para contar. Tantas que ele morreria contando-as, tentando acordar quem estava dormindo ou distraído.

Essa pessoa se chamava Aloysio Biondi (1936-2000), e essas histórias tenebrosas que ele expôs com maestria estão reunidas em um livro maravilhoso, chamado “Aloysio Biondi: resistência ética e grandeza no jornalismo”, de Thais Sauaya (da editora Terra Redonda, 2020, 224 páginas).

O livro tem mil e uma razões para ser lido. Uma delas é sua incrível  atualidade. A sensação é a de que já vimos esse filme antes. O nome dos personagens e as circunstâncias são outros, mas os problemas são exatamente os mesmos: a insensibilidade de governos autoritários para com questões sociais; o desprezo pelo patrimônio público, inclusive o ambiental, transformado em modelo de negócio; o ministro que o presidente de plantão transforma em czar (a tradução da palavra russa “czar” para o português do Brasil atual é “Posto Ipiranga”); a pressão para que os jornalistas sejam ventríloquos ou de governos, ou de grandes corporações, ou de ambos; e a “fake news” de que a melhor solução para enfrentar uma crise e resolver o problema do déficit público é penalizar os mais pobres, sucatear e privatizar o Estado.

O livro é uma preciosidade porque trata de uma figura em si grandiosa, que não apenas relatou, mas insurgiu-se contra tudo isso. Biondi não foi o Heródoto do jornalismo econômico, ou seja, não foi seu inventor, mas, com o livro da Thaís, se descobre que ele foi um Tucídides. Foi aquele que reinventou esse tipo de jornalismo e lhe deu mais precisão.

Assim como Tucídides, Biondi era um guerreiro. Ele não apenas achava, ele tinha a certeza de que, ao escrever, estava travando  batalhas presentes e futuras em defesa de sua nação. O professor de jornalismo econômico sabia que a melhor forma de ganhar essa guerra era fazendo com que os brasileiros entendessem mais de economia e soubessem se defender.

Embora tenha sido agraciado várias vezes com os maiores prêmios de jornalismo, as verdadeiras condecorações de Biondi foram as cicatrizes que colecionou em duelos. A cada vez que ele revelava a existência de interesses econômicos escusos, isso desagradava a grupos que pressionavam o veículo que as publicava e também o ministro que deveria cuidar da economia. Este, ao invés de desbaratar conluios, ligava para o chefe de Biondi, que o repreendia e o demitia.

Assim, Biondi foi, de um lado, acumulando carimbos em sua carteira de trabalho e, de outro, granjeando a admiração entre jornalistas e economistas, tornando-se uma lenda. Todos o viam fazendo o que qualquer jornalista sério, por obrigação e amor à profissão, deveria fazer.

Thais narra essas aventuras e desventuras de maneira fluida e saborosa de se ler. Quem se prepara para encarar uma biografia intelectual de Biondi vai receber bem mais que isso.

A autora desnovela um enredo em que estão juntos, e bem combinados, uma viagem de ônibus em que o jornalista presenciou o desmatamento da Mata Atlântica, na região do Vale do Paraíba – motivo de uma matéria que lhe renderia um de seus Prêmios Esso – até o episódio em que Biondi e o então ministro da Fazenda, Delfim Netto, frente a frente, bateram boca.

Tecnicamente, eles chisparam desavenças sobre o cálculo do déficit da balança comercial. Trocando em miúdos, Biondi acusava Delfim de estar jogando o dinheiro do país pelo ralo.

A história da Merda em Pó S/A é outra que nos deixa boquiabertos. O anexo 13, com os truques de manipulação de matérias, é uma pérola que se deveria ler todos os dias antes de se abrir o noticiário.

Muito além de causos, todas essas histórias contadas são situações-problema enfrentadas por um jornalista em redação ou na condição de editor. Problemas de alguém que deve escolher entre a ética da responsabilidade, em detrimento da ética da convicção e, mais ainda, da ética da conveniência. Essas situações ensinam que jornalismo é saber separar o joio do trigo não para publicar o joio, e sim, as evidências.
Infelizmente, Thais Sauaya (1959-2009) também se foi cedo e parou de nos contar histórias. Seu marido, Sergio Alli, revela que “este livro foi uma das primeiras razões que me animaram a criar a Terra Redonda Editora. Publicar o trabalho de minha companheira Thais Sauaya, falecida prematuramente em um acidente de automóvel em março de 2009, aos 49 anos, é antes de tudo uma homenagem a ela, com amor e saudade.”

Todas as histórias mais significativas da trajetória profissional e dos embates travados por Biondi estão relatadas no livro. Salvo se alguma, a derradeira, ele tiver levado para o túmulo, quando fulminado precocemente por um infarto aos 64 anos, em 2000.

Era uma época de grande turbulência, com a crise da desvalorização do real, e Biondi estava na crista da onda. O jornalista havia acabado de lançar seu “best seller”, “O Brasil Privatizado” (hoje disponível para baixar na Fundação Perseu Abramo). O livro teve um grande impacto no debate sobre as privatizações, nadando contra a corrente, e rendeu edições sucessivas, esgotadas na Perseu Abramo e também na Geração Editorial. Isso elevou ainda mais a reputação de Biondi, sendo seu “grand finale”.

Duas décadas depois de sua morte, Biondi continua atual. Por isso o livro de Thais Sauaya, com prefácio de André Singer e apresentação dos filhos de Aloysio, Pedro e Antonio Biondi, mais que uma homenagem, é quase um manual de sobrevivência.

Antonio Lassance é doutor em ciência política, historiador e especialista em comunicação organizacional.

Fonte: Jornal GGN

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