Era uma vez um país em que se prometia que a devastação
ambiental iria abrir novas fronteiras econômicas e gerar riqueza sem igual.
Nesse lugar, embustes eram anunciados como grandes negócios. Os escroques que
as promoviam se passavam facilmente por Midas (transformavam qualquer
pedregulho em ouro). A imprensa vendedora de “secos e molhados”, de que falava
o Millôr, os exaltava.
Pequenos investidores eram enganados o tempo todo com
promessas mirabolantes de ganhos fáceis na bolsa de valores, desde que
acreditassem na lábia de quem se dizia um esperto bem-sucedido. O mercado de
ações parecia um paraíso ao alcance de todos.
Empresas ficavam gigantes, do dia para a noite, em cima
de fraudes de sonegação e lavagem de dinheiro. Depois de grandes, recebiam
fartas injeções de recursos públicos e perdões de suas dívidas, sem qualquer
contrapartida social.
O ministro responsável pela economia não só não se
incomodava com isso como ficava irritado com quem atrapalhava a festa.
Algo parece familiar? Pois é, esse era o Brasil da
ditadura. Um país que foi falido várias e várias vezes. Não quebrou. Foi
quebrado.
Quebraram o Brasil de forma tão recorrente a ponto de
Chico Buarque compor, em 1984, o “Vai Passar”. Em verso, Chico cantava que
“dormia a nossa pátria mãe, tão distraída, sem perceber que era subtraída em
tenebrosas transações”.
Enquanto isso, alguém de olhos bem abertos atravessava
madrugadas martelando uma máquina datilográfica para cravar, com bons números,
boas fontes e faro jornalístico impecável, como é que se estava destruindo o
Brasil.
Ao longo de décadas, esse senhor que era, além de tudo,
um cozinheiro de mão-cheia, teve muitas dessas histórias para contar. Tantas
que ele morreria contando-as, tentando acordar quem estava dormindo ou
distraído.
Essa pessoa se chamava Aloysio Biondi (1936-2000), e
essas histórias tenebrosas que ele expôs com maestria estão reunidas em um
livro maravilhoso, chamado “Aloysio Biondi: resistência ética e grandeza no
jornalismo”, de Thais Sauaya (da
editora Terra Redonda, 2020, 224 páginas).
O livro tem mil e uma razões para ser lido. Uma delas é
sua incrível atualidade. A sensação é a de que já vimos esse filme antes.
O nome dos personagens e as circunstâncias são outros, mas os problemas são
exatamente os mesmos: a insensibilidade de governos autoritários para com
questões sociais; o desprezo pelo patrimônio público, inclusive o ambiental,
transformado em modelo de negócio; o ministro que o presidente de plantão
transforma em czar (a tradução da palavra russa “czar” para o português do
Brasil atual é “Posto Ipiranga”); a pressão para que os jornalistas sejam
ventríloquos ou de governos, ou de grandes corporações, ou de ambos; e a “fake
news” de que a melhor solução para enfrentar uma crise e resolver o problema do
déficit público é penalizar os mais pobres, sucatear e privatizar o Estado.
O livro é uma preciosidade porque trata de uma figura
em si grandiosa, que não apenas relatou, mas insurgiu-se contra tudo isso.
Biondi não foi o Heródoto do jornalismo econômico, ou seja, não foi seu
inventor, mas, com o livro da Thaís, se descobre que ele foi um Tucídides. Foi
aquele que reinventou esse tipo de jornalismo e lhe deu mais precisão.
Assim como Tucídides, Biondi era um guerreiro. Ele não
apenas achava, ele tinha a certeza de que, ao escrever, estava travando
batalhas presentes e futuras em defesa de sua nação. O professor de jornalismo
econômico sabia que a melhor forma de ganhar essa guerra era fazendo com que os
brasileiros entendessem mais de economia e soubessem se defender.
Embora tenha sido agraciado várias vezes com os maiores
prêmios de jornalismo, as verdadeiras condecorações de Biondi foram as
cicatrizes que colecionou em duelos. A cada vez que ele revelava a existência
de interesses econômicos escusos, isso desagradava a grupos que pressionavam o
veículo que as publicava e também o ministro que deveria cuidar da economia.
Este, ao invés de desbaratar conluios, ligava para o chefe de Biondi, que o
repreendia e o demitia.
Assim, Biondi foi, de um lado, acumulando carimbos em
sua carteira de trabalho e, de outro, granjeando a admiração entre jornalistas
e economistas, tornando-se uma lenda. Todos o viam fazendo o que qualquer
jornalista sério, por obrigação e amor à profissão, deveria fazer.
Thais narra essas aventuras e desventuras de maneira
fluida e saborosa de se ler. Quem se prepara para encarar uma biografia
intelectual de Biondi vai receber bem mais que isso.
A autora desnovela um enredo em que estão juntos, e bem
combinados, uma viagem de ônibus em que o jornalista presenciou o desmatamento
da Mata Atlântica, na região do Vale do Paraíba – motivo de uma matéria que lhe
renderia um de seus Prêmios Esso – até o episódio em que Biondi e o então
ministro da Fazenda, Delfim Netto, frente a frente, bateram boca.
Tecnicamente, eles chisparam desavenças sobre o cálculo
do déficit da balança comercial. Trocando em miúdos, Biondi acusava Delfim de
estar jogando o dinheiro do país pelo ralo.
A história da Merda em Pó S/A é outra que nos deixa
boquiabertos. O anexo 13, com os truques de manipulação de matérias, é uma
pérola que se deveria ler todos os dias antes de se abrir o noticiário.
Muito além de causos, todas essas histórias contadas
são situações-problema enfrentadas por um jornalista em redação ou na condição
de editor. Problemas de alguém que deve escolher entre a ética da
responsabilidade, em detrimento da ética da convicção e, mais ainda, da ética
da conveniência. Essas situações ensinam que jornalismo é saber separar o joio
do trigo não para publicar o joio, e sim, as evidências.
Infelizmente, Thais Sauaya (1959-2009) também se foi
cedo e parou de nos contar histórias. Seu marido, Sergio Alli, revela que “este
livro foi uma das primeiras razões que me animaram a criar a Terra Redonda
Editora. Publicar o trabalho de minha companheira Thais Sauaya, falecida
prematuramente em um acidente de automóvel em março de 2009, aos 49 anos, é
antes de tudo uma homenagem a ela, com amor e saudade.”
Todas as histórias mais significativas da trajetória
profissional e dos embates travados por Biondi estão relatadas no livro. Salvo
se alguma, a derradeira, ele tiver levado para o túmulo, quando fulminado
precocemente por um infarto aos 64 anos, em 2000.
Era uma época de grande turbulência, com a crise da
desvalorização do real, e Biondi estava na crista da onda. O jornalista havia
acabado de lançar seu “best seller”, “O Brasil Privatizado” (hoje disponível
para baixar na Fundação
Perseu Abramo). O livro teve um grande impacto no debate sobre as
privatizações, nadando contra a corrente, e rendeu edições sucessivas,
esgotadas na Perseu Abramo e também na Geração Editorial. Isso elevou ainda
mais a reputação de Biondi, sendo seu “grand finale”.
Duas décadas depois de sua morte, Biondi continua
atual. Por isso o livro de Thais Sauaya, com prefácio de André Singer e
apresentação dos filhos de Aloysio, Pedro e Antonio Biondi, mais que uma
homenagem, é quase um manual de sobrevivência.
Antonio
Lassance é doutor em ciência política, historiador e especialista em
comunicação organizacional.
Fonte:
Jornal GGN
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