terça-feira, 7 de julho de 2020

“É POSSÍVEL DIALOGAR COM BOLSONARISMO POPULAR MODERADO”, DIZ PESQUISADORA




Os brasileiros que votaram em Jair Bolsonaro em 2018 hoje se dividem em três grupos: fiéis, apoiadores críticos e arrependidos. Os fiéis seguem ao lado do presidente e atribuem as crises que ele enfrenta a um boicote de instituições e da mídia. Os críticos veem erros do chefe do Executivo e consideram votar em outros nomes em 2022. E os arrependidos querem que ele saia do cargo, por renúncia ou impeachment.

Essa é uma das conclusões de uma pesquisa realizada por Camila Rocha, do Cebrap, e Esther Solano, da Unifesp. Outra conclusão é que, mesmo entre os eleitores que gostariam de votar em outro nome nas próximas eleições ou que o presidente saia já do cargo, há insatisfação sobre alternativas políticas e insegurança sobre o que viria depois.

Em entrevista à DW Brasil, Rocha afirma que o hiato entre os partidos de tradição democrática e o que ela define como “bolsonarismo popular moderado” foi provocado pela decepção com o envolvimento do PT em escândalos de corrupção, que maculou o sistema político como um todo, e por uma reação conservadora ao avanço de pautas progressistas nas esfera dos valores, como cotas para universidades e união homoafetiva, nos quais o presidente conseguiu “surfar” e se eleger.

Para reduzir essa distância, ela afirma que militantes de partidos políticos deveriam parar de tratar eleitores de Bolsonaro de forma pejorativa, o que ocorre quando eles são chamados de “gado” ou “estúpidos”. “As pessoas veem isso e se sentem mal, ficam com raiva. Ninguém quer ser tratado desse jeito”, diz Rocha.

“É possível estabelecer diálogo com boa parte do eleitorado do Bolsonaro. Não são [pessoas] radicalizadas, fazem parte das classes trabalhadoras e experimentam uma insegurança muito grande do ponto de vista trabalhista ou nas relações sociais. Estão desempregadas ou ameaçadas de perder o emprego e sentem todos os efeitos da espoliação urbana das grandes cidades”, afirma.

A pesquisa usou uma metodologia qualitativa que convida grupos pequenos, com três eleitores de Bolsonaro em cada, para conversas acompanhadas por uma moderadora, com o objetivo de captar argumentos e sentimentos dessa parcela da população. Foi financiada e publicada pela Fundação Friedrich Ebert, ligada ao Partido Social-Democrata (SPD) da Alemanha. Foram ouvidos 27 eleitores das classes C e D e moradores da região metropolitana de São Paulo, de 9 a 18 de maio, em conversas que duraram de uma hora e quarenta minutos a três horas e meia.

DW Brasil: Como é a metodologia da pesquisa?

Camila Rocha: Usamos o minigrupo focal. Diferente do grupo focal clássico, que coloca várias pessoas que não se conhecem numa sala e o mediador simula uma conversa, fazemos com um grupo menor de pessoas. Isso cria um ambiente mais intimista. São grupos de três pessoas, só homens ou só mulheres, que se conhecem previamente. Ficamos várias horas conversando com elas para entender os argumentos e as emoções que usam e sentem, com maior profundidade.

Que resultado encontraram?

Queríamos explorar os argumentos que o eleitorado popular do Bolsonaro vem utilizando. Depois a gente os separou em três grupos: os apoiadores fiéis, que mantêm apoio constante ao presidente, os apoiadores críticos, que continuam o apoiando mas fazem críticas mais contundentes, e os arrependidos, que votaram no Bolsonaro, mas se arrependem e querem que ele deixe o poder.

Como os apoiadores fiéis avaliam o presidente?

Eles entendem que Bolsonaro é um político autêntico e verdadeiro e que sua postura seria um indicativo dessa autenticidade, em comparação a outros políticos, que essas pessoas acham falsos e manipulados pelo marketing. Acham Bolsonaro coerente e comprometido com os valores e as políticas que anunciou na campanha de 2018. Para elas, a dificuldade do presidente para governar é atribuída ao que esse grupo entende como boicotes, principalmente por parte da mídia, mas também por parte do Congresso e do  Supremo. A frase mais recorrentes dessas pessoas é “O presidente quer fazer um bom governo, mas não deixam ele trabalhar”. Contudo, mesmo entre os apoiadores fiéis, a grande maioria não compartilha da ideia do presidente de que a pandemia seria uma gripezinha, principalmente as mulheres.

Esse grupo em geral apoia o fechamento do Congresso e do Supremo?

Essa é uma uma questão mais complicada. O fechamento do Congresso é um tema que se espraia para os três grupos, que não está necessariamente ligado a uma fidelidade ao presidente. O que essa parcela do eleitorado sente é uma decepção profunda com o sistema político, entendem que o Congresso, que deveria representar o povo, está corrompido. Então, se ele está corrompido, não representa mais o povo. É uma frustração emocional. O sentimento é que não está funcionando, então deveria fechar e recomeçar do zero. Claro que algumas pessoas têm uma visão autoritária, mas o que a maioria das pessoas sente é essa decepção, e as falas de fechamento do Congresso são um sintoma disso.

Como o grupo dos mais fiéis consome informação?

Todos os grupos têm uma dieta de mídia variada, se informam por canais de televisão, redes sociais, Youtube, portais de internet. Mas entre os apoiadores fiéis existe uma tendência de se informar também por canais mais ligados ao discurso do presidente, canais de Youtube de direita ou programas de rádio que tenham ressonância com esse discurso. E entre os mais fiéis existe incômodo com canais de televisão aberta, especialmente com a Rede Globo, que as pessoas percebem como um canal que manipula as informações e que é contra Bolsonaro.

E como o grupo dos apoiadores críticos avalia o presidente?

Entre eles a narrativa se divide. Existem os que que argumentam que o presidente estaria sendo boicotado, mas menos se comparado aos fiéis. Também aparece que o comportamento do presidente seria fonte de instabilidade, e que ele adicionaria às crises que a gente vem vivendo. Falam que é autêntico, mas passa dos limites e deveria obedecer mais aos protocolos do cargo. Também veem como ponto de instabilidade a atuação política dos filhos do presidente, especialmente em relação às investigações sobre fake news e o possível caso de corrupção da Alerj [Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro] do senador Flávio Bolsonaro, e à postura do Bolsonaro em relação à condução das investigações. Isso aparece nos três grupos com intensidade diferenciada: falam que se for provado que Bolsonaro tentou obstruir as investigações, então estaria cometendo um crime, e é melhor que deixe o poder.

E como o grupo dos arrependidos vê Bolsonaro?

Estão profundamente decepcionados com ele, decepção que ficou maior frente à pandemia, e querem que o presidente deixe o poder. Mas ao mesmo tempo há certa hesitação. Falam: “Quero que ele saia, porque a permanência dele vai causar muito estrago. Agora, a gente não sabe o que vai acontecer, tem medo do que pode acontecer. O vice entraria no lugar? Ou teria novas eleições?”. Algumas eleitoras falaram: “Na época do impeachment da Dilma, a gente achava que ia ter novas eleições e não teve, entrou o Temer no lugar e foi pior”. É uma das principais conclusões dessa pesquisa, existe uma aflição em relação ao vácuo no poder que representaria uma possível saída do presidente do cargo. Esse abismo de possibilidades dificulta que essas pessoas pensem em alternativas políticas viáveis.

Como esses três grupos se comportariam na eleição de 2022? Votariam de novo 
em Bolsonaro?

Eles se dividem. Alguns sim. Outros dizem que dependeria de quem estivesse concorrendo. Alguns arrependidos dizem “não votaria no Bolsonaro de jeito nenhum” e algumas chegam a dizer “até no PT eu votaria contra o Bolsonaro”. Mas outros falam “a depender de quem fosse concorrer, me veria obrigada a votar no Jair de novo”. Esse voto no menos pior por falta de alternativa é algo que a gente detectou, que de novo remete à decepção com as elites políticas.

A conclusão da pesquisa cita uma sensação de falta de alternativa por parte dos eleitores. Por que os partidos com tradição democrática não estão conseguindo se comunicar com eles?

Primeiro, estamos falando de eleitores de Bolsonaro que fazem parte das classes populares e trabalhadoras. Pessoas que já votaram no PT e se decepcionaram com os escândalos de corrupção. No começo dos anos 2000, o PT seria uma promessa de que representava os trabalhadores e que não era envolvido com corrupção. Os que votaram no PT têm um sentimento de traição muito forte. E esse impacto também atingiu a imagem que as pessoas tinham do sistema político [como um todo].

Outra coisa é relacionada à esfera dos valores. De 2011 a 2014, observamos um avanço muito rápido das pautas progressistas, não só na institucionalidade, mas também na sociedade. Na mídia, teve marcha das vadias, a pauta da transexualidade. Na institucionalidade, a criação da Comissão Nacional da Verdade, foi liberado o aborto de fetos anencéfalos, teve a Lei da Palmada, o STF deu segurança jurídica para as cotas raciais nas universidades e para a união estável entre pessoas do mesmo sexo. A sociedade passou por uma série de avanços nessas pautas progressistas.

Isso gerou uma reação forte na esfera dos valores. Boa parte da população era contrária a várias dessas pautas, e o Bolsonaro conseguiu surfar nessa reação conservadora. Juntou a desconfiança que as pessoas têm das instituições políticas e a confiança que nas Forças Armadas e nas instituições religiosas. Como militar que depois se aproximou dos setores evangélicos conservadores, ele capturou esse sentimento na esfera dos valores. Há dificuldade não só dos políticos do campo progressista para se comunicar com esses setores, mas também de setores da mídia tradicional.

Teria recomendações para os partidos tentarem superar esse hiato?

A primeira coisa é que a postura de tratar setores da população, até o próprio eleitor do Bolsonaro, de forma pejorativa — como, por exemplo, chamar as pessoas de gado ou dizer que são estúpidas — não ajuda. As pessoas veem isso e se sentem mal, ficam com raiva. Ninguém quer ser tratado desse jeito. Por exemplo, uma mulher evangélica falou: “As pessoas acham que sou burra só porque sou evangélica e não vêm conversar comigo”. Elas sentem que existe um preconceito em relação a elas, e de fato existe, porque se parte do pressuposto de que, se uma pessoa votou no Bolsonaro, ela é autoritária e super conservadora. Aí você já corta qualquer ponte de diálogo.

Por mais difícil que seja, é possível estabelecer diálogo com boa parte do eleitorado do Bolsonaro, especialmente com as pessoas que fazem parte do que a gente chama de bolsonarismo popular moderado. Não são radicalizadas, fazem parte das classes trabalhadoras e experimentam uma insegurança muito grande do ponto de vista trabalhista ou nas relações sociais. Estão desempregadas ou ameaçadas de perder o emprego e sentem todos os efeitos da espoliação urbana das grandes cidades.

Fonte: Jornal GGN

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