segunda-feira, 15 de junho de 2020

NÃO EXISTE “BOLSONARISMO”, MAS SIM INGÊNUOS, CORRUPTOS E DEMENTES, POR ÁLVARO MIRANDA




É demais da conta atribuir a Bolsonaro os “ismos” da história. Não por ressentimento de quem, prestes a completar 63 anos, viveu a juventude debaixo de ditadura, o fulgor da esperança nas tardes caindo feito viaduto e depois a maturidade nos experimentos de uma democracia plena durante três décadas, interrompida há quatro anos por um golpe sórdido que pavimentou ladeira abaixo o abismo em que nos encontramos.

Não! Mas sim por esforço de imaginação sociológica manejando o método da história. Hitler acabou ganhando a dimensão do “ismo” negativo e pérfido, acoplado ao seu nome, considerando o tempo e a própria devastação humana que representou sua existência de 1933 a 1945. Tenho dúvidas se a história pode se repetir como farsa ou tragédia, por considerar que esse tipo de frase também têm suas peculiaridades históricas, assim como o próprio “ismo” do seu célebre autor.

Se a teleologia do nosso convívio social não garante no futuro os propósitos firmados no presente, o que dizer de uma teleologia ao avesso, espécie de presente futurista que quisesse voltar ao passado? Daí que os fantasmas muitas vezes acabam envenenado a imaginação sociológica, não raras vezes, encorajando a crença numa volta a tempos que já passaram. Compreensível essa paranoia por termos sempre o passado como exemplo.

Entretanto, nem vou aqui entrar nessa obviedade para fazer análise comparativa, dizendo que as condições de cada momento têm que ser vistas de forma contextualizada. É comum a sociologia política dizer hoje que o Ocidente venceu Hitler e Mussolini, mas assumiu o nazismo e o fascismo de forma camuflada. Isso tem uma dose de verdade dentro da hipocrisia do capitalismo. Mas, se fosse verdade completa, a maioria dos países estaria sendo governada por ditaduras.

No exercício da imaginação, arrisco aqui humildes intuições. Vão aqui dois exemplos díspares de dimensão histórica e significados distintos, dentre muitos que poderíamos pesquisar. Normalmente quem atribui e dissemina o “ismo” a alguém ou a uma força não é o próprio, mas sim apoiadores ou adversários. No caso do exemplo de adversários, aconteceu assim com Marx no tempo da I Internacional no fim do século XIX e, certamente, com Getúlio Vargas, com atribuição de apoiadores e opositores.
O marxismo merece o “ismo” da história porque se tornou clássico nas ciências sociais, mesmo entre liberais e outras correntes divergentes das proposições daquele como método de sociologia científica. E isso apesar da ironia histórica de o próprio Marx dizer, de forma nada irônica, que não era marxista. Estudiosos dão conta de que fora Bakunin o autor da alcunha nas querelas entre adversários dentro da própria esquerda.

Gostem ou não de Getúlio Vargas, também aqui getulismo merece o sufixo no nome por representar a primeira grande transformação do estado brasileiro republicano, após quatro décadas marcadas por um presidencialismo monárquico de oligarquias agrárias. Tanto mais porque, corroborando o “ismo”, suas criações institucionais perduram até hoje, apesar do início do seu desmonte nos anos 1990.

Aliás, Fernando Henrique Cardoso atestou o merecimento do sufixo acoplado ao nome de Getúlio ao declarar que seu governo estava encerrando o varguismo em 1994. FHC, único pela fama das iniciais do nome, tipo marca de produto, acabou ficando apenas com o “ismo” subentendido do receituário do Consenso de Washington – o neoliberalismo que afundou a América Latina na década de 1990.

Para o bem ou para o mal entendimento da história recente, o caso de Lula talvez seja um exemplar de olhar científico em que o sufixo acoplado ao nome surge como tese de livre-docência de um porta-voz do personagem. E é conhecida também a disposição, muitas vezes pejorativa, do termo “lulo-petismo”.

A teoria política e a história das filosofias, ciências e religiões nos fazem lembrar que esses “ismos” não são, obviamente, como nomes de ruas, instituídos em homenagens a pessoas mortas. Mas, sim que surgiram e permaneceram no tempo em relações conflituosas das formações sociais pelo que significaram e constituíram para os seres humanos em termos de valores, correntes de pensamento, visões de mundo e de políticas públicas. Poderíamos citar um lista eloquente: platonismo, aristotelismo, darwinismo, espinozismo, budismo e vários de diferentes áreas, incluindo os pérfidos da política como salazarismo, macharthismo e tantos outros.

O xis da questão aqui é o seguinte. Espantoso é as forças democráticas e os opositores de Bolsonaro engrandecerem involuntariamente o pequeno. Assim o fazem disparando contra os próprios pés ao incensarem sua imagem com o veneno da contradição. Ao mesmo tempo em que tentam desqualificá-lo, disseminam um suposto “bolsonarismo”, sugerindo assim a existência de ampla transformação social e de valores de vida, com elementos arraigados e consolidados como movimento histórico, embora nada comparável a qualquer “ismo” que possamos sacar da memória.

Bolsonaro, saliente-se sempre, é um desqualificado tanto para o cargo quanto para alguma mudança sociológica ou filosófica estrutural. Quando falam de milícia, os paranoicos sugerem que há uma “milícia brasileira” no poder. Ora, bem se sabe que milícias são grupos clandestinos, fragmentados e conflituosos. Seu caráter histórico é prosaico mas não exclusivo do Brasil, vale dizer, a mistura da bandidagem do crime comum com a corrupção da política.

Todos sabemos a que milícias se referem quando falam do atual governo, isto é, dos amigos da família de Bolsonaro. Ou seja, coisa bem localizada. Seria imaginar demais milícias unidas nacionalmente e mudando a cultura de um país como o Brasil. Ainda mais pelo próprio caráter de grupos com interesses criminosos imediatistas que se matam entre si. Repito o que já disse em outro texto: que o digam os familiares dos arquivos queimados.

Quando denunciam a ameaça à democracia, esquecem-se que tal ameaça vem se apresentando como arroz de festa dos discursos desde a campanha eleitoral. E o discurso do golpe incensa e incentiva medos de quem acredita em força unívoca de algo nas mãos do mandatário.

Ameaças se tornaram uma tática simbólica, eficaz somente perante os que se afetam pelos seus efeitos imaginários, seu barulho e pirotecnia, a exemplo dos fogos de artifício espocados noite dessas sobre o Supremo Tribunal Federal com gente tosca gritando, no anonimato da covardia, que os ministros são comunistas e vão se dar mal e outras baboseiras.

Muitos defensores da democracia ficam temerosos, esquecendo que poder político não se possui. Poder político é exercido, isto sim, de forma “poliédrica”, digamos assim. Vivemos o que Robert Dahl chama de “poliarquia”, vale dizer, um regime com diferentes forças governando ou desgovernando, ainda mais numa federação complexa como a brasileira.

Nem vou entrar também aqui na análise numérica dos votos das últimas eleições para evidenciar mais uma vez que Bolsonaro não contou com o apoio da maioria da sociedade. Teve a maioria dos votos válidos, sim. Ganhou no jogo democrático formal da nossa aposta institucionalizada e que – lutemos e defendamos sempre –, permaneça como rotineira de quatro em quatro anos sem golpes.

Apenas lembro que, depois de eleito e em meio às intempéries permanentes, disseminou-se um suposto apoio duvidoso de 30 por cento da sociedade como se fosse algo cristalizado e garantido. Como se o governo não estivesse sendo, na verdade, um desgoverno marcado pelo espetáculo de imprevistos com rachas e declarações de trânsfugas e desiludidos. Não vai demorar muito, a próxima a odiar Bolsonaro será essa Sara Winter, figura bizarra demais para se admitir como força ameaçadora contra os poderes da República.

Sem falar que bastou um único domingo de protestos contra Bolsonaro pelo país para o o tom golpista mudar o diapasão. Para os apoiadores de Bolsonaro verem a diferença numérica. Apenas um domingo em comparação aos três ou quatro anteriores de manifestações de grupelhos barulhentos a favor do governo. Até no chiqueirinho da entrada do Palácio do Alvorada já começaram a aparecer pessoas peitando Bolsonaro.

Antes de exagerarmos num sociologismo apressado, com paranoias que incensam a tática do adversário, bom relembrarmos os fatos recentes para verificar a mixórdia de baixo nível que caracteriza não um movimento histórico, mas sim uma gritaria desesperada de um governo sem políticas públicas que pode até chegar ao fim do mandato, porém totalmente esfarelado.

Em meio à pandemia sem controle e à crise econômica sem qualquer proposta concreta de políticas públicas, trata-se das fakenews que o elegeram e incentivaram o ódio despropositado contra Lula e o PT (e que continuaram depois, virando caso de polícia) à nomeação de pessoas suspeitas, passando por essa gente desconexa que se autodenomina “300”, vendo-se assim que Bolsonaro pode entrar para a história, sim, no caso, porém, a lata de lixo, sem “ismos”, pois representando um lapso, um acidente, da democracia marcado pelo apoio de ingênuos, a gritaria de dementes e o oportunismo de corruptos.

Fonte: Jornal GGN

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