A Teoria da Prática aplicada ao jornalismo ganhou um
novo impulso depois do surgimento da pandemia do Coronavirus, quando ficou
claro que a atividade informativa precisaria acelerar o abandono de paradigmas
convencionais para poder atender às novas demandas informativas criadas pela
Covid -19 em todo o mundo.
Na definição da pesquisadora finlandesa Laura Ahva, a
Teoria da Pratica é o conjunto de representações identificáveis, padronizáveis
e personificáveis compostas por seres móveis, objetos manuseáveis, processos
capazes de serem descritos e ambientes que podem ser entendidos. Numa definição
mais simples, é uma forma de entender uma realidade desconhecida a partir da
observação, codificação e categorização de dados, fatos e eventos registráveis
num ambiente determinado.
O sociólogo inglês Nick Couldry defende a Teoria da
Prática como um paradigma preocupado com a forma, objetivos e valores adotados
pelas pessoas na relação com a mídia e menos com textos, imagens, declarações e
instituições jornalísticas. “O que as pessoas estão fazendo em relação à mídia
num amplo espectro de situações e contextos?”, afirma no texto Theorizing
Media as Practice (2004).
Até agora a maioria dos estudos sobre jornalismo se
preocupava mais em analisar a realidade a partir de textos e documentos,
centrados nas redações e nos negócios jornalísticos do que na realidade
exterior a estes dois ambientes. O objetivo era achar soluções para problemas
da profissão e das empresas mais do que identificar mudanças nos
comportamentos, necessidades e aspirações dos indivíduos que compõem a
audiência dos veículos de comunicação jornalística.
A
prática como aventura teórica
A mais recente pandemia na longa sequência de
mortandades a atingir a humanidade deflagrou uma serie de mudanças no modo de
viver das pessoas, como é o caso do distanciamento social em plena era das
aglomerações globalizadas. Como nas pandemias anteriores, a inexistência de
vacinas e remédios transformou a informação no único antídoto eficaz para
combater a contaminação generalizada.
As mudanças provocadas pela Covid-19 tornaram ainda
mais intenso o processo transformador deflagrado pelas novas tecnologias de
informação e comunicação (TICs), já no final do século passado. Isto acabou
mostrando também a urgência do jornalismo encontrar um novo marco teórico capaz
de orientar sua adequação à nova realidade informativa, marcada pelo
esgotamento do modelo comercial na imprensa.
Em seu trabalho pioneiro na Universidade
Tampere de Ciências Aplicadas, Finlândia,
Laura Ahva, entende a Teoria da Prática como um ponto de partida para a reinvenção
do jornalismo com base na observação da prática em realidades especificas
através de uma integração estreita com outras disciplinas, em especial
etnografia e antropologia.
Para Nick Couldry, a Teoria da Prática tem a vantagem
de ver o jornalismo da era digital como uma área desconhecida que é necessário
explorar ao identificar seus componentes, origens, dinâmica e condicionantes.
Ele recorre a princípios já desenvolvidos na etnografia e antropologia no
sentido de rejeitar ideias pré-existentes para valorizar os dados, fatos,
processos e eventos identificados através da observação distante ou
participante.
As observações de Couldry fazem sentido porque o fato
concreto é o de que o jornalismo, de maneira geral, entrou na era digital com
base no erro e acerto, na falta de paradigmas previamente testados. São uma
prova disto o alto índice de mortalidade das chamadas “start ups” e o elevado
índice de fracasso de projetos lançados por empresas como a Google.
O fato do jornalismo contemporâneo defrontar-se com uma
realidade digital ainda desconhecida pela maioria dos profissionais confere à
atividade características de mutabilidade e liquidez que apenas confirmam a
necessidade de buscar novos paradigmas teóricos para orientar a pesquisa da
realidade.
Uma
“feira de teorias”
Na verdade a Teoria da Prática é uma família de
teorias, ou na definição de Ahva, uma “feira de teorias” (trading zone) , uma
espécie de ponto de encontro de várias propostas. Esta “família de teorias” é
uma consequência direta do aumento da multi e interdisciplinaridade na
investigação jornalística. Uma simples reportagem sobre um crime gera hoje um
conjunto de abordagens etnográficas, antropológicas, psicológicas,
sociológicas, jurídicas e econômicas, só para citar algumas áreas de conhecimento
que integram o contexto do evento. O conjunto destas abordagens permite uma
maior aproximação à essência do fato a ser noticiado. É esta
interdisciplinaridade que está no coração da Teoria da Prática.
Outra característica marcante da “feira de teorias” é
sua escalabilidade, ou seja, capacidade de utilização tanto no nível macro como
no micro, e suas gradações intermediarias. A Teoria da Pratica pode servir de
guia tanto para a pesquisa hiperlocal visando um sistema de informação num
bairro ou rua, como na busca de paradigmas nacionais ou internacionais. Um
paradigma teórico hiperlocal é um dado básico de realidade num contexto
regional ou nacional.
Para se adequar à nova realidade informativa pós
pandemia, a Teoria da Prática propõe que o jornalismo examine a prática de um
ambiente específico tentando identificar os elementos que direcionam,
inter-relacionam, condicionam e explicam ações de atores envolvidos no fato,
dado, processo ou evento em observação. Neste ponto, a Teoria da Prática se inspira
nos trabalhos de Bruno Latour, da mesma forma que a identificação das
estruturas onde se desenvolve a pesquisa jornalística se apoia nas ideias de
Antony Giddens, e o estudo do ambiente humano usa a obra de Pierre Bourdieu.
Carlos
Castilho – Pesquisador do objETHOS e colaborador do Observatório da Imprensa
Referências
COULDRY, Nick. Theorizing Media as Practice.
Social Semiotics, vol. 14, numero 2, pag 115-132. DOI :
10.1080/1035033042000238295. 2004
AHVA, Laura. Practice Theory for Journalism
Studies. Journalism Studies, DOI : 10.1080./1461670X.2016.1139464. 2016
Fonte:
Jornal GGN
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