Nos últimos meses o
mundo vem sentido o impacto da pandemia gerada pelo COVID-19. Tal
enfermidade gerou estado de caos em alguns países europeus levando à morte
centenas de pessoas. As estatísticas apontam que até o momento há cerca de 40
mil mortos pelo vírus em todo mundo, mais uma quantidade inestimável de infectados.
Tal cenário
alarmante tem provocado sérias medidas restritivas de convívio social,
impossibilitando a circulação de cidadãos em quase todos os países.
Como forma de
contenção, a quarentena, método antigo utilizado há séculos, surgiu como meio
para diminuir as contaminações e o aumento de circulação do vírus,
principalmente pela letalidade em pessoas com doenças pré-existentes ou idade
acima dos sessenta anos, o que denominaram grupo de risco.
Tal cenário
modificou a vida pública e privada como há muito não era visto.
Mas, se por um lado
a pandemia mostrou as falhas no sistema de saúde em quase todos os países,
expondo a ineficiência do Estado em gerir uma crise de tamanha dimensão, por
outro iluminou a realidade da vida privada, mostrando o pesadelo que milhares
de mulheres e crianças que, embora vivam diferentes realidades são atingidas
pelo mesmo problema: a violência.
Na América há uma
ascensão de mortes alarmantes, só na Argentina, nos dez primeiros dias de
quarentena foram registrados doze feminicídios, tal número não é um caso
isolado dentro do continente, que já apresenta um aumento assustador de
assassinatos.
Segundo María-Noel
Vaeza,directora regional de ONU para las Américas y el Caribe asegura que “el
hecho de que el hombre no tenga acceso a fuentes de trabajo, tenga mayores
frustraciones por el hecho de no poder proveer para su familia y carezca de
distracciones como el deporte, va a aumentar la violencia doméstica”.
Tal frase aponta
que na ausência de “distrações”, a mulher é o primeiro alvo de violência,
mostrando o caráter desumano de entidades vinculadas aos organismos de
poder.
Temos a impressão
que desconhecem o tema, utilizando frases estereotipadas e ineficientes para
compreender a complexidade do assunto.
Mas, embora existam
posições inadequadas como essa relatada, há diversas organizações voltadas para
a proteção às mulheres que já sabiam da realidade da vida doméstica, ou
seja: o lar é o lugar mais violento e perigoso para as mulheres.
As mortes
geralmente ocorrem pelas mãos dos companheiros, ex companheiros ou familiares
próximos e mostra como a sociedade já naturalizou os índices absurdos, o que
podemos exemplificar com o caso argentino,onde o número de assassinatos
femininos supera o número de mortes causados pelo COVID-19.
Frente a uma crise
sanitária, vemos um ruído baixo sobre os casos recentes.
No dia 31, mulheres
bateram panelas desde suas janelas e sacadas, em um ato para chamar atenção dos
cidadãos para um problema que parece longe de ser solucionado.
O fenômeno dos
homens dentro de casa como causadores da violência sofrida por mulheres já não
podem ser negados, é realidade.
Diante disso o
Estado argentino tomou uma série de medidas paliativas como tentativa de
contenção dos feminicídios, tentativas essas infantilizadas, que excluem
mulheres que vivem em zonas mais afastadas, ou simplesmente não conseguem sair
de casa para pedir ajuda.
O uso do número
144, mais a medida organizada juntamente com a Confederación Farmacéutica
Argentina (COFA) determinam que mulheres podem pedir nas farmácias um pano
vermelho como sinal de alerta da violência sofrida dentro de suas
residências.
A medida se mostra
inviável, pois as mesmas são obrigadas a retornar aos seus lares, e os
perpetradores seguem no recinto, o retorno pode ocorrer por medo, os filhos que
ali estão, ou a dependência econômica ou afetiva.
Visto desde a
perspectiva hetero/patriarcal a casa é propriedade masculina, conjuntamente com
a mulher e os filhos que ali habitam, portanto, pedir “ajuda” em uma farmácia,
não parece algo fácil de fazer quando o medo de sair desse local
predomina.
Segundo a
antropóloga Rita Segato os feminicídios são crimes de poder, poder sobre o
corpo das mulheres, que seriam como territórios masculinos. Assim, o aumento da
violência expõe ainda mais essa lógica bastante vinculada ao capitalismo, que
fazem das mulheres propriedades, tal como a casa, sendo assim, os homens podem
fazer o que bem entenderem com seus corpos, já então desprovidos de humanidade,
mas coisificados pelo direito ao uso para o que bem entenderem.
Rita, ainda aponta
que a espetacularização dos crimes de forma indiscriminada e
irresponsável, vem auxiliando no aumento de casos, justamente pela impunidade
cada vez mais evidente.
Dessa soma há
variáveis que aumentam tal realidade, como: alcoolismo, drogas, transtornos,
mais a negação em lidar com um modelo de mulher atual, que não atende mais às
demandas impostas pelos homens outrora.
Nesse sentido, o
Estado, forjado dentro da mesma lógica patriarcal, nada mais é que o
sustentáculo de todo esse sistema, o que facilita o entendimento da inabilidade
e desprezo dado frente às mortes incessantes.
Pedir ao Estado
proteção seria seguir abraçada com o inimigo, então o que nos resta? Essa é a
pergunta que há décadas fazemos, no entanto, sabemos que possivelmente a
solução não virá pelas mãos dos governos, o que nos leva a refletir sobre as
possibilidades que sobram.
Agora, frente a
crise causada pela pandemia, que seguramente irá diminuir com o tempo, pois
atinge todo o corpo social, como seguirá a vergonha do continente com todas
esses feminicídios? Qual será a postura do governo argentino recém eleito,
denominado progressista, mas que segue a lógica de gestão no que tange às
mulheres semelhante aos demais países regidos por líderes conservadores,
retrógrados e machistas? Qual será a resposta de Alberto Fernandez após o fim
da quarentena para os familiares dessas mulheres? Qual explicação receberá a
massa feminina cansada de sair nas ruas e gritar cada vez mais forte que
estamos presentes pelas mortas e que lutamos dentro do território domiciliar e
social para sobreviver a todo tipo de violência?
Somos a força bruta
que faz a maquinaria social seguir. Mães, filhas, trabalhadoras, autônomas,
donas de casa, estudantes, somos aquilo que a sociedade nega ver como cidadãs,
mas que move absolutamente tudo.
“Las mujeres
constituyen la mayoría de los trabajadores en el sector de servicios sociales y
de salud: 70% en 104 países analizados por la Organización Mundial de la Salud
(OMS)”
Mas, não
somos sequer donas dos nossos corpos, pois há um Estado regulador que todavia
não nos concedeu o direito de decidir seguir ou não com uma gravidez, mesmo que
esse Estado não forneça a posteriori nenhum apoio.
O fim da pandemia
pode tardar mais alguns meses, o que nos perguntamos como mulheres
latino-americanas é até quando viveremos sob o signo do medo e da indiferença
que domina nossas vidas? Até quando traumas, dores, cansaço e medo seguiram
fazendo parte do nosso cotidiano?
Ainda que um dia o
Estado e a sociedade reconheçam os abusos cometidos por séculos não haverá
perdão, indenização, e alterações suficientes para esquecer tudo que
estamos vivendo dentro desse cenário caótico de enfermidade, mortes e
violência.
Camila Koenigstein
– Graduada em História, pela Pontificia Universidade Católica-SP e pós
graduada em Sociopsicologia pela Fundação de Sociologia e Politica- SP.
Atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais, com enfase em América
Latina, pela Universidade de Buenos Aires (UBA).
Fontes:
SEGATO, Rita.
Contra pedagogías de la crueldad. Buenos Aires, Argentina. Editorial Prometeo.
2018.
Fonte: Jornal GGN