Os brasileiros que votaram em Jair Bolsonaro em 2018
hoje se dividem em três grupos: fiéis, apoiadores críticos e arrependidos. Os
fiéis seguem ao lado do presidente e atribuem as crises que ele enfrenta a um
boicote de instituições e da mídia. Os críticos veem erros do chefe do
Executivo e consideram votar em outros nomes em 2022. E os arrependidos querem
que ele saia do cargo, por renúncia ou impeachment.
Essa é uma das conclusões de uma pesquisa realizada por
Camila Rocha, do Cebrap, e Esther Solano, da Unifesp. Outra conclusão é
que, mesmo entre os eleitores que gostariam de votar em outro nome nas próximas
eleições ou que o presidente saia já do cargo, há insatisfação sobre
alternativas políticas e insegurança sobre o que viria depois.
Em entrevista à DW Brasil, Rocha afirma que o hiato
entre os partidos de tradição democrática e o que ela define como “bolsonarismo
popular moderado” foi provocado pela decepção com o envolvimento do PT em
escândalos de corrupção, que maculou o sistema político como um todo, e por uma
reação conservadora ao avanço de pautas progressistas nas esfera dos valores,
como cotas para universidades e união homoafetiva, nos quais o presidente
conseguiu “surfar” e se eleger.
Para reduzir essa distância, ela afirma que militantes
de partidos políticos deveriam parar de tratar eleitores de Bolsonaro de forma
pejorativa, o que ocorre quando eles são chamados de “gado” ou “estúpidos”. “As
pessoas veem isso e se sentem mal, ficam com raiva. Ninguém quer ser tratado
desse jeito”, diz Rocha.
“É possível estabelecer diálogo com boa parte do
eleitorado do Bolsonaro. Não são [pessoas] radicalizadas, fazem parte das
classes trabalhadoras e experimentam uma insegurança muito grande do ponto de
vista trabalhista ou nas relações sociais. Estão desempregadas ou ameaçadas de
perder o emprego e sentem todos os efeitos da espoliação urbana das grandes
cidades”, afirma.
A pesquisa usou uma metodologia qualitativa que convida
grupos pequenos, com três eleitores de Bolsonaro em cada, para conversas
acompanhadas por uma moderadora, com o objetivo de captar argumentos e
sentimentos dessa parcela da população. Foi financiada e publicada pela
Fundação Friedrich Ebert, ligada ao Partido Social-Democrata (SPD) da Alemanha.
Foram ouvidos 27 eleitores das classes C e D e moradores da região
metropolitana de São Paulo, de 9 a 18 de maio, em conversas que duraram de uma
hora e quarenta minutos a três horas e meia.
DW
Brasil: Como é a metodologia da pesquisa?
Camila Rocha: Usamos o minigrupo focal. Diferente
do grupo focal clássico, que coloca várias pessoas que não se conhecem numa
sala e o mediador simula uma conversa, fazemos com um grupo menor de pessoas.
Isso cria um ambiente mais intimista. São grupos de três pessoas, só homens ou
só mulheres, que se conhecem previamente. Ficamos várias horas conversando com
elas para entender os argumentos e as emoções que usam e sentem, com maior
profundidade.
Que
resultado encontraram?
Queríamos explorar os argumentos que o eleitorado
popular do Bolsonaro vem utilizando. Depois a gente os separou em três grupos:
os apoiadores fiéis, que mantêm apoio constante ao presidente, os apoiadores
críticos, que continuam o apoiando mas fazem críticas mais contundentes, e os
arrependidos, que votaram no Bolsonaro, mas se arrependem e querem que ele
deixe o poder.
Como os
apoiadores fiéis avaliam o presidente?
Eles entendem que Bolsonaro é um político autêntico e
verdadeiro e que sua postura seria um indicativo dessa autenticidade, em
comparação a outros políticos, que essas pessoas acham falsos e manipulados
pelo marketing. Acham Bolsonaro coerente e comprometido com os valores e as
políticas que anunciou na campanha de 2018. Para elas, a dificuldade do
presidente para governar é atribuída ao que esse grupo entende como boicotes,
principalmente por parte da mídia, mas também por parte do Congresso e do
Supremo. A frase mais recorrentes dessas pessoas é “O presidente quer fazer um
bom governo, mas não deixam ele trabalhar”. Contudo, mesmo entre os apoiadores
fiéis, a grande maioria não compartilha da ideia do presidente de que a
pandemia seria uma gripezinha, principalmente as mulheres.
Esse
grupo em geral apoia o fechamento do Congresso e do Supremo?
Essa é uma uma questão mais complicada. O fechamento do
Congresso é um tema que se espraia para os três grupos, que não está
necessariamente ligado a uma fidelidade ao presidente. O que essa parcela do
eleitorado sente é uma decepção profunda com o sistema político, entendem que o
Congresso, que deveria representar o povo, está corrompido. Então, se ele está
corrompido, não representa mais o povo. É uma frustração emocional. O
sentimento é que não está funcionando, então deveria fechar e recomeçar do
zero. Claro que algumas pessoas têm uma visão autoritária, mas o que a maioria
das pessoas sente é essa decepção, e as falas de fechamento do Congresso são um
sintoma disso.
Como o
grupo dos mais fiéis consome informação?
Todos os grupos têm uma dieta de mídia variada, se
informam por canais de televisão, redes sociais, Youtube, portais de internet.
Mas entre os apoiadores fiéis existe uma tendência de se informar também por
canais mais ligados ao discurso do presidente, canais de Youtube de direita ou
programas de rádio que tenham ressonância com esse discurso. E entre os mais
fiéis existe incômodo com canais de televisão aberta, especialmente com a Rede
Globo, que as pessoas percebem como um canal que manipula as informações e que
é contra Bolsonaro.
E como o
grupo dos apoiadores críticos avalia o presidente?
Entre eles a narrativa se divide. Existem os que que
argumentam que o presidente estaria sendo boicotado, mas menos se comparado aos
fiéis. Também aparece que o comportamento do presidente seria fonte de
instabilidade, e que ele adicionaria às crises que a gente vem vivendo. Falam
que é autêntico, mas passa dos limites e deveria obedecer mais aos protocolos
do cargo. Também veem como ponto de instabilidade a atuação política dos filhos
do presidente, especialmente em relação às investigações sobre fake news e o
possível caso de corrupção da Alerj [Assembleia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro] do senador Flávio Bolsonaro, e à postura do Bolsonaro em relação à
condução das investigações. Isso aparece nos três grupos com intensidade
diferenciada: falam que se for provado que Bolsonaro tentou obstruir as
investigações, então estaria cometendo um crime, e é melhor que deixe o poder.
E como o
grupo dos arrependidos vê Bolsonaro?
Estão profundamente decepcionados com ele, decepção que
ficou maior frente à pandemia, e querem que o presidente deixe o poder. Mas ao
mesmo tempo há certa hesitação. Falam: “Quero que ele saia, porque a
permanência dele vai causar muito estrago. Agora, a gente não sabe o que vai
acontecer, tem medo do que pode acontecer. O vice entraria no lugar? Ou teria
novas eleições?”. Algumas eleitoras falaram: “Na época do impeachment da Dilma,
a gente achava que ia ter novas eleições e não teve, entrou o Temer no lugar e
foi pior”. É uma das principais conclusões dessa pesquisa, existe uma aflição
em relação ao vácuo no poder que representaria uma possível saída do presidente
do cargo. Esse abismo de possibilidades dificulta que essas pessoas pensem em
alternativas políticas viáveis.
Como
esses três grupos se comportariam na eleição de 2022? Votariam de novo
em
Bolsonaro?
Eles se dividem. Alguns sim. Outros dizem que
dependeria de quem estivesse concorrendo. Alguns arrependidos dizem “não
votaria no Bolsonaro de jeito nenhum” e algumas chegam a dizer “até no PT eu
votaria contra o Bolsonaro”. Mas outros falam “a depender de quem fosse
concorrer, me veria obrigada a votar no Jair de novo”. Esse voto no menos pior
por falta de alternativa é algo que a gente detectou, que de novo remete à
decepção com as elites políticas.
A conclusão da pesquisa cita uma sensação de falta de
alternativa por parte dos eleitores. Por que os partidos com tradição
democrática não estão conseguindo se comunicar com eles?
Primeiro, estamos falando de eleitores de Bolsonaro que
fazem parte das classes populares e trabalhadoras. Pessoas que já votaram no PT
e se decepcionaram com os escândalos de corrupção. No começo dos anos 2000, o
PT seria uma promessa de que representava os trabalhadores e que não era
envolvido com corrupção. Os que votaram no PT têm um sentimento de traição
muito forte. E esse impacto também atingiu a imagem que as pessoas tinham do
sistema político [como um todo].
Outra coisa é relacionada à esfera dos valores. De 2011
a 2014, observamos um avanço muito rápido das pautas progressistas, não só na
institucionalidade, mas também na sociedade. Na mídia, teve marcha das vadias,
a pauta da transexualidade. Na institucionalidade, a criação da Comissão
Nacional da Verdade, foi liberado o aborto de fetos anencéfalos, teve a Lei da
Palmada, o STF deu segurança jurídica para as cotas raciais nas universidades e
para a união estável entre pessoas do mesmo sexo. A sociedade passou por uma
série de avanços nessas pautas progressistas.
Isso gerou uma reação forte na esfera dos valores. Boa
parte da população era contrária a várias dessas pautas, e o Bolsonaro
conseguiu surfar nessa reação conservadora. Juntou a desconfiança que as
pessoas têm das instituições políticas e a confiança que nas Forças Armadas e
nas instituições religiosas. Como militar que depois se aproximou dos setores
evangélicos conservadores, ele capturou esse sentimento na esfera dos valores.
Há dificuldade não só dos políticos do campo progressista para se comunicar com
esses setores, mas também de setores da mídia tradicional.
Teria
recomendações para os partidos tentarem superar esse hiato?
A primeira coisa é que a postura de tratar setores da
população, até o próprio eleitor do Bolsonaro, de forma pejorativa — como, por
exemplo, chamar as pessoas de gado ou dizer que são estúpidas — não ajuda. As
pessoas veem isso e se sentem mal, ficam com raiva. Ninguém quer ser tratado
desse jeito. Por exemplo, uma mulher evangélica falou: “As pessoas acham que sou
burra só porque sou evangélica e não vêm conversar comigo”. Elas sentem que
existe um preconceito em relação a elas, e de fato existe, porque se parte do
pressuposto de que, se uma pessoa votou no Bolsonaro, ela é autoritária e super
conservadora. Aí você já corta qualquer ponte de diálogo.
Por mais difícil que seja, é possível estabelecer
diálogo com boa parte do eleitorado do Bolsonaro, especialmente com as pessoas
que fazem parte do que a gente chama de bolsonarismo popular moderado. Não são
radicalizadas, fazem parte das classes trabalhadoras e experimentam uma
insegurança muito grande do ponto de vista trabalhista ou nas relações sociais.
Estão desempregadas ou ameaçadas de perder o emprego e sentem todos os efeitos
da espoliação urbana das grandes cidades.
Fonte:
Jornal GGN