Ao contrário de todos os cientistas do mundo, alguns
pastores evangélicos, entre eles Silas Malafaia e Edir Macedo, garantem não
haver nenhum risco de transmissão do coronavírus nos seus templos, durante as
pregações bíblicas, cantos de hinos religiosos e testemunhos de fé. Como
ninguém irá conferir os nomes dos mortos ou das pessoas internadas por
coronavírus com os dos membros dessas igrejas evangélicas, o risco de um
desmentido é remoto.
Como se não bastasse essa afirmação mentirosa, a
Justiça também parece compartilhar dessa crença e oferece sua ajuda. Foi assim
que, na semana passada, contra tudo e contra todos, um juiz do Rio de Janeiro
decidiu ignorar a recomendação de confinamento da Organização Mundial da Saúde
e de todos os países do mundo. O pastor evangélico Malafaia tinha sido
autorizado pelo juiz, contra decisão do governador do Rio de Janeiro, a
continuar reunindo os fiéis em suas igrejas, certo de que Deus os protegeria do
coronavírus. Diante da má repercussão dessa vitória judicial, foi o próprio
pastor quem recuou, afirmando ficarem abertos os templos, mas sem realização de
cultos coletivos. O episódio mostra que o Brasil descobriu a máquina do tempo e
decidiu retornar à Idade Média.
O recuo do pastor Malafaia evitou um certo caos, pois a
exceção jurídica brasileira iria incentivar outras igrejas, não só evangélicas,
a desejar se beneficiar da mesma decisão judicial para suas comunidades terem
livre ingresso em seus templos e cultos, missas e sessões. Sem medo do vírus,
porque seriam protegidas por Deus, dentro das mesmas crendices medievalescas
com resultado danoso para a Europa, cuja população morria como moscas mesmo com
o uso de água benta.
E, nessa altura, qual deverá ser a nossa atitude? De um
lado, um presidente que convocou o povo para se manifestar nas ruas com o risco
de contrair coronavírus, cuja irresponsabilidade justifica um impeachment. E
agora, na sequência, um pastor pretensamente protegido por Deus, que insistia
em reunir seu rebanho de fiéis incautos em cultos de centenas de pessoas, entre
as quais haveria contaminados pelo vírus, sujeitos a internação e mesmo com
risco de morte. Nos dois casos, é inquietante a irresponsabilidade. Ambos
seriam punidos em qualquer outro país.
O fanatismo dos evangélicos
O Brasil vive hoje em plena Idade Média. Piores do que
o coronavírus são a ignorância, o cheiro fétido do beatismo, o charlatanismo e
a enganação pregada e propagada pelos chamados pastores evangélicos. Uma versão
moderna de Deus e o Diabo na Terra do Sol, que deixaria apoplético Glauber
Rocha – o ranço imanente dessa versão bíblica evangélica tirada dos porões
do Mayflower, trazida ao Brasil e implantada à força de cantos e gritos
histéricos na nossa cultura.
Deus acima de tudo – acima da ciência, da inteligência,
da lógica, do saber, da literatura, da história. Mas que Deus? O Deus das
fogueiras da Idade Média, das inquisições, das teorias imbecis, do céu, da
salvação das almas e do medo do inferno. O Deus dos espertos que se aproveitam
dos ignorantes, dos simples e pobres de espírito.
Nas análises do Brasil de hoje de Bolsonaro
(econômicas, sociais, políticas e outras tantas), falta este ângulo resultante
da nefasta influência evangélica – o de um Brasil destruído pela crendice
bíblica, pela mentira levada ao povo e pelas ações dos vendilhões do templo.
Enquanto o mundo inteiro se preparava para enfrentar
esse novo vírus, capaz de relançar o clima de medo, da morte e da peste que
enlutou a Europa durante 400 anos anos, um presidente cego ria do perigo, no qual
lançava seus fanáticos seguidores.
Quatro dias depois, o mesmo presidente – apostando na
idiotice desses seguidores desmemoriados – reapareceu de máscara mal colocada
no rosto, reconhecendo o risco do vírus.
Tarde demais: no domingo em que a irresponsabilidade do
presidente levou às ruas cegos seguidores em mais de 200 cidades, num fenômeno
de infecção coletiva, milhares contraíram o vírus do qual desdenhavam e em cuja
existência não acreditavam. Logo veremos as dramáticas consequências.
Um presidente que expõe sua gente ao risco de morte não
é digno do cargo e está merecendo um impeachment imediato por motivo de saúde
pública.
Porém, isso dificilmente ocorrerá. Em torno dele,
protegendo-o, estão os sacerdotes da mentira e da morte, iguais àqueles vestidos
de preto e cheirando enxofre da Idade Média; aproveitando-se do nome de Cristo,
eles continuarão suas rendosas pregações.
Seus pobres fiéis explorados não percebem, mas seus
pastores são, sem dúvida, as Bestas do Apocalipse.
Enquanto o planeta (ou será que a Terra é plana, como
diz o guru do presidente?) pede para todos evitarem sair às ruas para se
proteger contra a nova peste, Silas Malafaia, o nome de um deles, reagiu contra
a exigência de as igrejas fecharem suas portas para evitar aglomerações.
Finalmente aceitou cancelar os cultos, mas as igrejas
permanecerão abertas, prestando assistência religiosa individual.. Malafaia
deve ter uma oração secreta contra o coronavírus, enviada por Satanás, se não
for ele próprio o Capeta…
E o autoproclamado bispo Edir Macedo é outro que
desdenha do risco mortal do vírus. O grande antídoto contra todos os vírus
seriam a Bíblia e o Evangelho, versão Igreja Universal, exatamente como diziam
os sacerdotes na época da peste negra, faz sete séculos; eram os anunciadores da
morte.
Ora, essa mesma Bíblia, no Livro das Revelações, ou
Apocalipse, tem um versículo destinado a todos quantos se enriquecem e enganam
o povo com religiões: “Sai dela, povo meu, para que não sejas participante dos
seus pecados, e para que não incorras nas suas pragas” (Apocalipse 18:4).
Sou ateu, creio na capacidade do homem para vencer
obstáculos como os vírus e vencer principalmente os enganadores que se
aproveitam da ignorância para lançar seu manto de trevas, como na Idade Média.
***
Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão,
exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos
emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade
brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07.
Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o
primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda,
em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Vive na Suíça, correspondente
do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.
Fonte:
Jornal GGN