É demais da conta atribuir a Bolsonaro os “ismos” da
história. Não por ressentimento de quem, prestes a completar 63 anos, viveu a
juventude debaixo de ditadura, o fulgor da esperança nas tardes caindo feito
viaduto e depois a maturidade nos experimentos de uma democracia plena durante
três décadas, interrompida há quatro anos por um golpe sórdido que pavimentou
ladeira abaixo o abismo em que nos encontramos.
Não! Mas sim por esforço de imaginação sociológica
manejando o método da história. Hitler acabou ganhando a dimensão do “ismo”
negativo e pérfido, acoplado ao seu nome, considerando o tempo e a própria
devastação humana que representou sua existência de 1933 a 1945. Tenho dúvidas
se a história pode se repetir como farsa ou tragédia, por considerar que esse
tipo de frase também têm suas peculiaridades históricas, assim como o próprio
“ismo” do seu célebre autor.
Se a teleologia do nosso convívio social não garante no
futuro os propósitos firmados no presente, o que dizer de uma teleologia ao
avesso, espécie de presente futurista que quisesse voltar ao passado? Daí que
os fantasmas muitas vezes acabam envenenado a imaginação sociológica, não raras
vezes, encorajando a crença numa volta a tempos que já passaram. Compreensível
essa paranoia por termos sempre o passado como exemplo.
Entretanto, nem vou aqui entrar nessa obviedade para
fazer análise comparativa, dizendo que as condições de cada momento têm que ser
vistas de forma contextualizada. É comum a sociologia política dizer hoje que o
Ocidente venceu Hitler e Mussolini, mas assumiu o nazismo e o fascismo de forma
camuflada. Isso tem uma dose de verdade dentro da hipocrisia do capitalismo.
Mas, se fosse verdade completa, a maioria dos países estaria sendo governada
por ditaduras.
No exercício da imaginação, arrisco aqui humildes
intuições. Vão aqui dois exemplos díspares de dimensão histórica e significados
distintos, dentre muitos que poderíamos pesquisar. Normalmente quem atribui e
dissemina o “ismo” a alguém ou a uma força não é o próprio, mas sim apoiadores
ou adversários. No caso do exemplo de adversários, aconteceu assim com Marx no
tempo da I Internacional no fim do século XIX e, certamente, com Getúlio
Vargas, com atribuição de apoiadores e opositores.
O marxismo merece o “ismo” da história porque se tornou
clássico nas ciências sociais, mesmo entre liberais e outras correntes
divergentes das proposições daquele como método de sociologia científica. E isso
apesar da ironia histórica de o próprio Marx dizer, de forma nada irônica, que
não era marxista. Estudiosos dão conta de que fora Bakunin o autor da alcunha
nas querelas entre adversários dentro da própria esquerda.
Gostem ou não de Getúlio Vargas, também aqui getulismo
merece o sufixo no nome por representar a primeira grande transformação do
estado brasileiro republicano, após quatro décadas marcadas por um
presidencialismo monárquico de oligarquias agrárias. Tanto mais porque,
corroborando o “ismo”, suas criações institucionais perduram até hoje, apesar
do início do seu desmonte nos anos 1990.
Aliás, Fernando Henrique Cardoso atestou o merecimento
do sufixo acoplado ao nome de Getúlio ao declarar que seu governo estava
encerrando o varguismo em 1994. FHC, único pela fama das iniciais do nome, tipo
marca de produto, acabou ficando apenas com o “ismo” subentendido do
receituário do Consenso de Washington – o neoliberalismo que afundou a América
Latina na década de 1990.
Para o bem ou para o mal entendimento da história
recente, o caso de Lula talvez seja um exemplar de olhar científico em que o
sufixo acoplado ao nome surge como tese de livre-docência de um porta-voz do
personagem. E é conhecida também a disposição, muitas vezes pejorativa, do
termo “lulo-petismo”.
A teoria política e a história das filosofias, ciências
e religiões nos fazem lembrar que esses “ismos” não são, obviamente, como nomes
de ruas, instituídos em homenagens a pessoas mortas. Mas, sim que surgiram e
permaneceram no tempo em relações conflituosas das formações sociais pelo que
significaram e constituíram para os seres humanos em termos de valores,
correntes de pensamento, visões de mundo e de políticas públicas. Poderíamos
citar um lista eloquente: platonismo, aristotelismo, darwinismo, espinozismo,
budismo e vários de diferentes áreas, incluindo os pérfidos da política como
salazarismo, macharthismo e tantos outros.
O xis da questão aqui é o seguinte. Espantoso é as
forças democráticas e os opositores de Bolsonaro engrandecerem involuntariamente
o pequeno. Assim o fazem disparando contra os próprios pés ao incensarem sua
imagem com o veneno da contradição. Ao mesmo tempo em que tentam
desqualificá-lo, disseminam um suposto “bolsonarismo”, sugerindo assim a
existência de ampla transformação social e de valores de vida, com elementos
arraigados e consolidados como movimento histórico, embora nada comparável a
qualquer “ismo” que possamos sacar da memória.
Bolsonaro, saliente-se sempre, é um desqualificado
tanto para o cargo quanto para alguma mudança sociológica ou filosófica
estrutural. Quando falam de milícia, os paranoicos sugerem que há uma “milícia
brasileira” no poder. Ora, bem se sabe que milícias são grupos clandestinos,
fragmentados e conflituosos. Seu caráter histórico é prosaico mas não exclusivo
do Brasil, vale dizer, a mistura da bandidagem do crime comum com a corrupção
da política.
Todos sabemos a que milícias se referem quando falam do
atual governo, isto é, dos amigos da família de Bolsonaro. Ou seja, coisa bem
localizada. Seria imaginar demais milícias unidas nacionalmente e mudando a
cultura de um país como o Brasil. Ainda mais pelo próprio caráter de grupos com
interesses criminosos imediatistas que se matam entre si. Repito o que já disse
em outro texto: que o digam os familiares dos arquivos queimados.
Quando denunciam a ameaça à democracia, esquecem-se que
tal ameaça vem se apresentando como arroz de festa dos discursos desde a
campanha eleitoral. E o discurso do golpe incensa e incentiva medos de quem
acredita em força unívoca de algo nas mãos do mandatário.
Ameaças se tornaram uma tática simbólica, eficaz
somente perante os que se afetam pelos seus efeitos imaginários, seu barulho e
pirotecnia, a exemplo dos fogos de artifício espocados noite dessas sobre o
Supremo Tribunal Federal com gente tosca gritando, no anonimato da covardia,
que os ministros são comunistas e vão se dar mal e outras baboseiras.
Muitos defensores da democracia ficam temerosos,
esquecendo que poder político não se possui. Poder político é exercido, isto
sim, de forma “poliédrica”, digamos assim. Vivemos o que Robert Dahl chama de
“poliarquia”, vale dizer, um regime com diferentes forças governando ou
desgovernando, ainda mais numa federação complexa como a brasileira.
Nem vou entrar também aqui na análise numérica dos
votos das últimas eleições para evidenciar mais uma vez que Bolsonaro não
contou com o apoio da maioria da sociedade. Teve a maioria dos votos válidos,
sim. Ganhou no jogo democrático formal da nossa aposta institucionalizada e que
– lutemos e defendamos sempre –, permaneça como rotineira de quatro em quatro
anos sem golpes.
Apenas lembro que, depois de eleito e em meio às
intempéries permanentes, disseminou-se um suposto apoio duvidoso de 30 por
cento da sociedade como se fosse algo cristalizado e garantido. Como se o
governo não estivesse sendo, na verdade, um desgoverno marcado pelo espetáculo
de imprevistos com rachas e declarações de trânsfugas e desiludidos. Não vai
demorar muito, a próxima a odiar Bolsonaro será essa Sara Winter, figura
bizarra demais para se admitir como força ameaçadora contra os poderes da
República.
Sem falar que bastou um único domingo de protestos
contra Bolsonaro pelo país para o o tom golpista mudar o diapasão. Para os
apoiadores de Bolsonaro verem a diferença numérica. Apenas um domingo em
comparação aos três ou quatro anteriores de manifestações de grupelhos
barulhentos a favor do governo. Até no chiqueirinho da entrada do Palácio do
Alvorada já começaram a aparecer pessoas peitando Bolsonaro.
Antes de exagerarmos num sociologismo apressado, com
paranoias que incensam a tática do adversário, bom relembrarmos os fatos
recentes para verificar a mixórdia de baixo nível que caracteriza não um
movimento histórico, mas sim uma gritaria desesperada de um governo sem
políticas públicas que pode até chegar ao fim do mandato, porém totalmente
esfarelado.
Em meio à pandemia sem controle e à crise econômica sem
qualquer proposta concreta de políticas públicas, trata-se das fakenews que o
elegeram e incentivaram o ódio despropositado contra Lula e o PT (e que
continuaram depois, virando caso de polícia) à nomeação de pessoas suspeitas,
passando por essa gente desconexa que se autodenomina “300”, vendo-se assim que
Bolsonaro pode entrar para a história, sim, no caso, porém, a lata de lixo, sem
“ismos”, pois representando um lapso, um acidente, da democracia marcado pelo
apoio de ingênuos, a gritaria de dementes e o oportunismo de corruptos.
Fonte: Jornal GGN