O filósofo Franz Hinkelammert é uma pessoa adorável.
Longos cabelos e barbas brancas, quase dois metros de altura. Os bigodes
amarelados pelo nunca abandonado hábito de fumar. Com 89 anos, vivendo na Costa
Rica há muito, apresenta uma jovialidade que impressiona.
Em um de seus livros o economista cristão desenvolve a
ideia de que, sob o capitalismo, se opera a mágica irresponsabilização dos
mercados pelas consequências diretas e indiretas das decisões concretas de seus
operadores, com a tolerância do aparato institucional partícipe do que chama de
ética do bando de ladrões. Essa pandemia constitui uma excelente oportunidade
para revisitar sua vasta obra.
Nesta reflexão utilizarei vários de seus conceitos
teóricos, sem citações literais, para não aborrecer meus raros leitores, e
procurarei ser direto.
Todos haverão de concordar que um empregador doméstico
em cuja casa habite alguém diagnosticado com a Covid-19 será eticamente
responsável pela eventual contaminação de sua empregada doméstica. Ao optar por
não dispensar seus serviços, remunerando-a obviamente, esse empregador assume o
risco do resultado de sua decisão. Não se trata de mera culpa, mas de dolo
eventual (no mínimo). Como empregador, não quer a morte da empregada, mas
assume os riscos de produzi-la.
Fixada essa premissa, estiquemos o argumento. Em todo o
mundo as cidades estão parando. Em várias delas há inclusive previsão de multas
e de prisão para os descumprimentos das determinações de isolamento. A OMS e
cientistas renomados divulgam estudos no sentido de que o isolamento social nas
atividades não essenciais é a única maneira de se evitar a contaminação
generalizada que leva, necessariamente, ao colapso dos sistemas hospitalares.
Dos quase 200 países existentes, apenas 4 teimam em negar as evidências
científicas: Belarus, Turcomenistão, Nicarágua e Brasil.
Em nosso país, diante da irresponsabilidade do títere
que tiraniza nossa estranha nação, atendendo ao comando do mercado (sujeito
substitutivo que invisibiliza interesses de pessoas de carne e osso, o 1% mais
rico), experimentamos uma esquizofrênica situação em que os governadores e
prefeitos têm que assumir responsabilidades que, em todo o mundo, são
acometidas à chefia do executivo nacional. Sendo assim, no Brasil, estados e
cidades têm regulado, em níveis diversos, as atividades que devem seguir
funcionando (as essenciais) e orientando que todas as demais sejam
interrompidas, com o fechamento dos estabelecimentos.
O trabalho doméstico, salvo nos casos de cuidadores de
idosos ou deficientes, não se encontra entre as atividades essenciais. Assim,
pode-se perquirir sobre eventual dolo praticado por empregadores que seguem
exigindo o trabalho de domésticos em suas residências. As aglomerações de
pessoas estão proibidas na maioria dos estados e em muitas cidades. Submeter um
empregado doméstico ao transporte coletivo e aos riscos de contaminação nas
ruas para que se desloquem até a residência do empregador não é razoável. O
empregador será, sim, responsável pela eventual contaminação de seu empregado
doméstico. Não terá mera culpa (negligência ou imprudência). O empregador,
nesse caso, age com dolo assumindo a eventualidade do resultado de sua
inconsequência. Será passível de condenação em indenizar.
Sigamos no raciocínio. O que se afirmou a respeito dos
domésticos vale para todos os demais trabalhadores em atividades não
essenciais.
Poucos teriam dúvidas em afirmar a responsabilidade
ética de um empregador que exigisse o trabalho, durante a pandemia, de um
trabalhador que integre o chamado grupo de risco (imunodeficientes, idosos,
diabéticos, cardíacos, entre outros). Muitos destes haveriam de vislumbrar
responsabilidade jurídica desses empregadores. O dolo é evidente. Não desejam a
morte desses trabalhadores, mas correm o risco de produzi-la. O cabimento de
indenização pareceria mais do que razoável. O ato concreto, a exposição a
risco, tem consequências. Não se trata de um mero efeito colateral. Há um ato
ilícito, o descumprimento de uma norma estadual ou municipal.
Havendo determinação (estadual ou municipal) de
isolamento ou afastamento social, as empresas que insistirem em manter seus
negócios abertos, exigindo o trabalho de seus empregados, mesmo para aqueles
que não se encontram no grupo de risco, salvo melhor juízo, não deveriam ter
enquadramento jurídico diferente. Esse vírus é geralmente transmitido por
perdigotos. Submeter qualquer empregado aos riscos de contágio no transporte
coletivo ou no contato com clientes e colegas de trabalho não é mero pecadilho
ético, configura-se em ato ilícito, doloso, passível de indenização.
Poderia haver alguma discussão sobre se tal
responsabilidade seria objetiva ou não. Mas parece inegável que, no mínimo, se
operaria a inversão do ônus da prova. Ao empregador caberia provar que não
expôs o empregado aos riscos de contaminação, no trajeto e no próprio local de
trabalho. Caberia, também, a discussão sobre o enquadramento do ato ilícito
como doença profissional ou acidente de trabalho (e eventual garantia de
emprego por um ano após a alta médica ou pensão aos herdeiros em caso de
falecimento, estatisticamente em 10% dos infectados no Brasil). Poderia, ainda,
levantar-se polêmica a respeito da competência funcional ou material para dirimir
essas controvérsias. Todavia, parece evidente que os responsáveis pelo ato
ilícito devem responder pelas consequências concretas de suas decisões de
reabrir seus negócios exigindo o trabalho de seus subordinados, contra as
evidências científicas, contra as orientações da OMS e do ministério da saúde,
contra os decretos estaduais e contra as determinações municipais, se
existentes.
Se cabem indenizações compensatórias posteriores,
evidentemente cabem tutelas inibitórias, a serem postuladas individual ou
coletivamente, por intermédio de ações civis públicas.
O poder público tem a responsabilidade de evitar a
morte e o adoecimento da população. Mas os empregadores não podem dela se
eximir em relação aos seus empregados. Os agentes concretos do mercado (empresários,
executivos, diretores, gerentes) são, sim, responsáveis por suas deliberações e
devem arcar com as consequências de seus dolosos atos ilícitos, pois assumem o
risco dos resultados de suas decisões, dos resultados delas decorrentes, dos
adoecimentos e das mortes que a ganância capitalista produzir.
Prevalecerá a ética do bando de ladrões, uns protegendo
os outros, nos mercados, nos governos, nas instituições e no judiciário?
Comeremos com farinha a farsa da irresponsabilização do capital frente às
consequências concretas das orientações empresariais? Os sindicatos se
resignarão e se limitarão a divulgar notas de protesto a cada descalabro
bolsonarista e a fazer lobby junto ao parlamento a cada iniciativa legislativa
precarizadora de direitos? Essas e outras impertinentes questões ainda estão em
aberto.
Parece cabível, no entanto, o alerta de que Bolsonaro
não é causa, é consequência de uma maneira de existir em sociedade. É contra
ela que deveríamos nos bater, contra as relações capitalistas de produção,
contra a exploração do trabalho humano pela apropriação da mais-valia, contra a
naturalização das potencialmente homicidas exigências capitalistas da retomada
das atividades econômicas ainda no início da pandemia, para assegura lucros
para as empresas, às custas da saúde e das vidas dos empregados e de seus
familiares.
A obra do meu amigo Franz Hinkelammert pode nos ajudar
a pensar a respeito de outras maneiras de existirmos em sociedade. Indico, para
quem queira começar a conhecer o pensamento do autor, As Armas Ideológicas da
Morte (1977), Crítica da Razão Utópica (1984) e seu Para uma Economia da Vida
(1995).
Wilson
Ramos Filho (Xixo) é doutor em direito, professor da UFPR e integra o Instituto
Defesa da Classe Trabalhadora.
Fonte: Jornal GGN