Eis que, bem numa
semana de subida da curva de contágio pela epidemia da Covid-19 no Brasil, com
o número de mortos indo para a casa dos milhares, o calendário nos lembrou de
duas datas comemorativas: o Dia Mundial da Saúde e o Dia do Jornalista.
Eram ambas
em 07 de abril – também o primeiro dia da lua cheia, que para a astrologia é
uma fase de agitação e transbordamento das emoções (para melhor ou para pior)…
Simbólico, não? Tanto profissionais da saúde quanto jornalistas estão passando
por momentos de muita tensão e lutando, cada um a seu modo, contra a pandemia e
suas consequências. O papel de jornalistas é bem distinto do de médicos e
enfermeiros, mas também é importante, afinal é impossível viver sem informação
confiável e contextualizada com o mundo virando de pernas para o ar.
A pandemia da
Covid-19 é um cenário novo, e não há fórmulas prontas para lidar com ela. Há
muitas tentativas, alguns erros e acertos, e muitos desafios, entre os quais
podemos citar o risco de contaminação pelo vírus para as equipes que trabalham
na rua, a dificuldade em conciliar atividades domésticas ao teletrabalho para
quem fica em casa, a ausência de contato físico com as fontes, o aparato
técnico limitado, o
agravamento da crise financeira dos media e a urgência de reportar com qualidade acontecimentos que
poderão transformar profundamente nossa vida em sociedade.
Como aponta a
pesquisadora Márcia
Franz Amaral em entrevista para o objETHOS, nenhum profissional se torna especialista no
coronavírus de um dia para o outro, e nenhum jornal consegue criar uma
estrutura de cobertura de uma hora para a outra. “A cobertura compassada com o
tempo cronológico do desastre é fundamentalmente anestesiante”, afirma ela.
Fato é que, desde que as medidas de isolamento social começaram a ser
implementadas no Brasil, todos os olhos dos noticiários se voltaram quase
unicamente ao tema da pandemia.
Do limite aos caminhos da cobertura diária da
TV
A cobertura
de hard news, jargão jornalístico usado para designar aquele tipo de
conteúdo voltado para um grande público e que discorre sobre os acontecimentos
mais recentes do dia a dia, foi (e segue sendo) super importante para manter as
pessoas informadas sobre as regiões mais afetadas pelo vírus, os cuidados para
evitar o contágio e, principalmente, as medidas que estão sendo tomadas pelo
poder público para enfrentar a situação junto à população (ou contra ela, em
alguns casos). No caso da
Globo, a líder de audiência na TV aberta, a aposta na cobertura extensiva com
foco nas hard news se destacou. Parte da programação de
entretenimento foi suspensa para dar lugar a programas jornalísticos. Todos os
dias, das 04h às 15h (ao todo, 11 horas consecutivas), a emissora transmite
programas ao vivo cujo foco é a cobertura da pandemia. O carro-chefe do
jornalismo da emissora, o Jornal Nacional, também teve seu espaço ampliado e
passou a ter 50 minutos de duração. Isso fora os telejornais locais, o Jornal
da Globo, os boletins que entram nos intervalos da programação, e daí por
diante. É sem dúvida um enorme esforço, que demanda comprometimento e
organização.
Mas essa estratégia
de cobertura estendida que, no início, serviu como um alento às mentes e
corações desassossegados pela ameaça da doença, com o passar do tempo parece se
aproximar de um ponto de saturação. Há falta de originalidade nas pautas.
Pesquisas e dados são divulgados mas, em alguns casos, há pouca interpretação e
contextualização. O monotema “coronavírus” se torna cansativo, as informações
se repetem noticiário após noticiário, os índices sobre o número de infectados
e mortos nos países atingidos são atualizados várias vezes ao dia, e isso tudo,
ao invés de tranquilizar, pode causar sentimentos de impotência, ansiedade e
tristeza nas pessoas, como alertam especialistas em saúde mental. Tanto que a
recomendação tem sido limitar
o volume e o tempo que se passa consumindo informações.
À
Pública, o autor do livro “A
psicologia da pandemia”, Steven Taylor, relembra outras vezes em que a
humanidade passou por momentos como esse e afirma que somos resilientes, porém
também aconselha limitar o volume de notícias sobre o tema, além de reforçar o
contato com amigos e familiares. Como sustentar tantas horas de programação
jornalística diárias e, ao mesmo tempo, evitar a repetição de informações? Como
manter a população bem informada sobre a pandemia sem, no entanto, saturá-la? É
uma situação difícil, mas uma coisa parece certa: o jornalismo diário,
principalmente o televisivo, precisará em breve se reinventar se não quiser se
tornar causador de angústia, ao invés de orientação, e desinteresse, ao invés
de referência. Boas saídas podem ser produzir dados confiáveis e
contextualizados sobre a pandemia, e criar conteúdos que alertem a população
sobre os riscos da desinformação, como apontou a pesquisadora Lívia Vieira
na newsletter
do Farol Jornalismo. Outra
solução, segundo ela, é dar ênfase para a checagem dos fatos.
O antídoto para a crise de desinformação
também é a chance do jornalismo
Aí vem outro
problema: em tempos de isolamento social, o excesso informacional não
vem só da
TV ou de outros meios jornalísticos. Pessoas em casa consomem muito mais
conteúdo on-line e se comunicam mais via redes sociais e mensageiros
instantâneos, que podem estar lotados de fake news. É fácil criar
desinformação num contexto de tantas incertezas, e ela vem, aliás, de todos os
lados: as autoridades políticas, que deveriam ser as primeiras a combater
informações falsas, são responsáveis por alguns dos surtos de fake
news sobre a pandemia, conforme aponta um artigo
assinado por fact-checkers brasileiros. Quem deveria demonstrar confiabilidade e proteger a população, é
flagrada endossando dados errados sobre vacinas, distanciamento social e origem
do novo coronavírus.
Isso tem dado
bastante trabalho às agências de checagem, que estão na linha de frente desse
combate. No fim de março, a Pública conversou com as chefias de quatro agências
brasileiras (a Lupa, Aos Fatos, E-farsas e Estadão Verifica) e apontou que o
volume de informações falsas que circulam sobre coronavírus surpreendeu até
os fact-checkers. A média é de três novas fake news por dia, e as
mais compartilhadas, segundo eles, são sobre receitas milagrosas e teorias da
conspiração. Os
checadores trabalham em conjunto com pesquisadores(as) e agentes de saúde para
desmentir os boatos que se espalham por aí, mostrando o que é confiável em meio
ao oceano de desinformação.
Mas se tem uma
notícia boa em meio a essa crise, é que o cenário de pandemia tem relembrado às
pessoas o valor da ciência e do jornalismo, que andavam com a imagem desgastada
pelos discursos anti-científicos e pelos ataques proferidos por governantes, entre
as quais o atual ocupante do cargo de presidente do Brasil. O filósofo Mário
Sérgio Cortella também aposta
na recuperação da confiança na mídia e na ciência como um dos legados da pandemia, e os
dados da pesquisa
Datafolha parecem
endossar isso: a TV e os jornais são vistos pela população como os mais
confiáveis na divulgação de informações sobre a crise do novo coronavírus, em
detrimento de informações obtidas nas redes sociais. Esta parece ser uma chance
de ouro para provar, de uma vez por todas, que o jornalismo é essencial para a
sociedade. Que informação verificada, contextualizada e bem elaborada é capaz
de nortear decisões melhores em momentos de crise.
Andressa Kikuti
Doutoranda em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pesquisadora do objETHOS
Doutoranda em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pesquisadora do objETHOS
Fonte: Jornal GGN