A crise causada pela epidemia Covid-19 precipitou entre
os analistas de todo mundo a discussão que se vinha travando sobre os limites
da globalização dos mercados, o liberalismo econômico e a necessidade da
emergência de um modelo de desenvolvimento baseado na sustentabilidade. No
momento não é possível saber que caminhos o mundo vai trilhar.
A urgência que agora se impõe é outra. Os países cuidam
de diagnosticar a extensão da crise em curso e de adotar medidas sanitárias e
econômicas para o fim de evitar um desastre humanitário maior. A realidade tem
mostrado que o isolamento social e a realização de testes trazem os melhores
resultados, ante a inexistência de vacina ou remédio disponível.
Os números trazidos pelos modelos epidemiológicos
elaborados pelo Imperial College de Londres dizem por si a extensão da tragédia
humana. Diante da ausência de medidas de contenção da epidemia, o Covid-19
poderia levar a morte 40 milhões de pessoas no mundo. Em caso de nenhuma
estratégia de isolamento e de enfrentamento da pandemia, o Brasil poderia ter
mais de 1,15 milhão de mortes. Com medidas rígidas de circulação para toda a
população – necessárias para bloquear o a circulação do vírus –, o estudo diz
que o número de mortes poderia ser reduzido para 44,2 mil.
Na prática, se nada for feito, os ensaios estatísticos
indicam que os países mais atingidos poderiam ter um número de mortes de cinco
a dez vezes mais elevado que o ordinário. Isso significa que, em poucos meses,
o Brasil teria um número de mortos a mais próximo daquele registrado pela média
anual.
A possibilidade do colapso dos sistemas de saúde
convenceu os governantes de que não se trata de uma simples gripe, e que é
necessário medidas urgentes de isolamento da população.
É certo que ninguém sabe qual será o número de vidas
humanas perdidas. Atualmente o mundo tem mais de 100.000 mortos. Para ficarmos
entre os países mais desenvolvidos, a Itália tem quase 20.000 mortos, a Espanha
17.000, os EUA 20.000 e a França 14.000. Todos eles, com maior ou menor grau,
em maior ou menor tempo, adotaram medidas de restrição.
De acordo com o Imperial College de Londres somente uma
política massiva de testes e de isolamento de pessoas contaminadas permitiriam
reduzir fortemente o número de mortes. Isto é, não bastam medidas de
confinamento. A realização de testes é condição para evitar mortes, mas também
a única luz capaz de permitir aos tomadores de decisão o levantamento de
restrições e do isolamento social.
Os estudiosos costumam extrapolar os dados da gripe
espanhola de 1918-1920 e seus ensinamentos para tentar entender melhor o
comportamento da epidemia do coronavírus. O ensaio tem lá seus limites; afinal
a realidade do mundo moderno é outra; também diversa é a natureza do vírus e
seu comportamento na população.
A gripe espanhola, que de espanhola só tem o nome –
porque nascida nos EUA -, matou quase 50 milhões de pessoas. Este número mais
visível, que representava à época algo em torno de 2% da população mundial,
esconde outras informações menos conhecidas. Trata-se das disparidades da
doença nos diversos países: a doença matou entre 0,5% e 1% da população dos EUA
e da Europa, contra 3% da Indonésia e África do Sul, e mais de 5% da população
da Índia.
A crise nos força a refletir sobre as condições
sanitárias e educativas no mundo e, particularmente, no Brasil. Temos motivos
de sobra para nos preocupar: o país conta com cerca de 13 milhões de pessoas
vivendo em favelas; além disso, temos 77 milhões de pessoas inscritas no
Cadastro Único do Governo Federal, um catálogo com a lista de pessoas em
situação de vulnerabilidade; outros 66 milhões de pessoas possuem uma renda
muito baixa, de menos de meio salário mínimo por pessoa da família; 41 milhões
de pessoas recebem o Bolsa Família; e o país ainda tem 41 milhões de
trabalhadores informais.
O anúncio de que o governo disponibilizará R$ 600,00
mensais aos trabalhadores informais inscritos no Cadastro Único é uma boa
medida. No entanto, está longe de resolver a situação do conjunto dos
brasileiros cuja realidade é marcada por enorme desigualdade social, alta taxa
de desemprego e condições sub-humanas de moradia.
Não se sabe até o momento como a epidemia se comportará
diante de um quadro em que grandes massas de pessoas vivem em condições
degradantes; onde grande número de pessoas convive em pequenas pocilgas; em
regiões onde faltam saneamento, água para higiene, recursos para a compra de
álcool gel, máscaras etc.
As medidas de isolamento social aplicadas em ambientes
de vulnerabilidade social tais como os existentes no Brasil podem se revelar
totalmente inadaptadas. Na ausência de renda, teme-se que os pobres saiam de
suas casas em busca de trabalho e contribuam para difundir a epidemia.
Além do problema social jamais equacionado, o Brasil
enfrenta grave problema político. Na presidência da República, Jair Bolsonaro
trata a pandemia com displicência. Através de atos e palavras investe contra o
isolamento social e as recomendações das autoridades de saúde. Aposta no desespero
da população e espera colher dividendos políticos com a desobediência
generalizada às medidas de contenção do vírus imposta pelos governadores.
Sem um comando único das diversas esferas de governo no
campo da saúde, o povo não sabe ao certo que diretriz sanitária seguir. Mais
grave. Contra a opinião da ciência, o presidente da República engana a
população e estimula a volta à uma normalidade que não existe; anuncia a
cloroquina como o elixir da cura para desferir um golpe à política do isolamento
social; tudo na esperança de que o caos lhe traga dividendo político.
A experiência insólita em curso no Brasil tem alto
potencial de dano social e humanitário; ela pode agravar a difusão do vírus num
ambiente social clivado pela pobreza de grande parcela da população, e que
sofre com políticas de austeridade impostas pela ideologia dominante dos
últimos anos.
O terrível desafio imposto pela pandemia impõe como
urgente a revisão das políticas neoliberais e o fim da austeridade fiscal. Tais
políticas deprimiram a capacidade de investimento do estado, enfraqueceram os
serviços públicos e se não se mostraram capazes de gerar emprego e renda.
Somente de 2014 para cá, o estado deixou de investir R$ 63 bilhões na geração
de obras e serviços. A jabuticaba brasileira do teto dos gastos, tal qual posto
pela PEC 95, sorveu do SUS somente no ano passado a importância de R$ 9
bilhões.
Passada esta fase mais aguda da crise, o país precisará
construir um novo contrato social. Mais do que nunca será também necessário
discutir uma nova forma de financiamento do estado. Não é possível que os mais
ricos continuem pagando impostos de menos com alíquotas regressivas; não se
pode mais permitir que o estado puna o trabalho e o investimento em detrimento
da renda e do patrimônio.
A crise pode ser a ocasião para refletirmos sobre a
necessidade da adoção de novos instrumentos capazes de fazer com que os
objetivos da República sejam enfim alcançados: a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização; e a
promoção do bem de todos (art. 3.º, CF). Condições de saneamento, educação,
moradia mínimas para o povo brasileiro devem ser financiadas pelo estado,
atores econômicos e pelos grandes grupos financeiros. É preciso interromper o
ciclo interminável de valorização dos ativos monetários, do dinheiro que gera a
valorização do dinheiro, e não riqueza.
Esta crise deverá também fazer-nos refletir sobre nosso
sistema econômico predatório, que subjuga a natureza, destrói as florestas,
polui os rios, para enfim permitir a criação de uma nova forma de relação
baseada na sustentabilidade econômica, social e ecológica. Não é admissível que
o país continue destruindo a floresta amazônica e seus povos originários em
prejuízo do patrimônio da nação e benefício de tão poucos.
O conjunto de transformações que cumpre ao país
realizar exigirá do povo brasileiro a capacidade de questionar não somente a
política daqueles que nos conduzem ao caos sanitário, mas também as políticas
econômicas que nos negam o desenvolvimento. A construção do nosso futuro como
nação independente e soberana não pode ser a escolha entre o reacionarismo dos
tolos e o fundamentalismo mercado. Ambos não nos servem.
Fonte: Jornal GGN