Bolsonaro – desculpem o vocabulário chulo – sabe o estrago
que ele faz saindo todos os dias cercado de seguranças em Brasília, visitando
padarias, farmácias e centrinhos comerciais.
Ele conta, em primeiro lugar, com a subserviência do
nosso jornalismo – que o segue, fotografa, divulga, critica e faz o serviço de
graça para sua comunicação política.
Em segundo lugar, ele consolida o trabalho que vem
fazendo de maneira impecável nos últimos anos: ele ideologiza a civilização.
Bolsonaro – perdão pela grosseria – conseguiu
ideologizar o isolamento, a única forma de prevenir uma escalada de mortes por
coronavírus.
O resultado está diante dos nossos olhos: o brasileiro
não respeita o isolamento. Se culturalmente já seria difícil convencer o
brasileiro a ficar dentro de casa, com esse estímulo semiótico diário dado pessoalmente
pela presidência da República torna-se tarefa impossível.
Quem fica dentro de casa somos nós, esquerdistas
fanáticos, opositores ao governo, paneleiros do mal.
Bolsonaro – perdão pela falta de educação – está rindo
à toa. Ele desfila na nossa cara e ninguém irá impedi-lo, pelo contrário: os
jornais e mídias ‘alternativas’ adoram destacar as fotos com ele caminhando
pelas ruas de Brasília. Dá um ibope danado.
A fronteira entre divulgar o que ‘precisa’ ser
divulgado e o oportunismo irresponsável de propagar o comportamento exótico de
um presidente com problemas de sanidade e caráter, foi implodida pela falta de
capacidade técnica do nosso jornalismo.
A imprensa faz questão de continuar sendo o retrato da
face mais obtusa da nossa sociedade, reativa, simplória e sem um pingo de
ambição em produzir e/ou aprimorar as técnicas de cobertura e redação.
Bolsonaro – desculpem o linguajar – conta com essa
imprensa para perpetuar seu poder de influência sobre a população brasileira,
inclusive a que o rejeita: a tensão entre presidente e imprensa faz com que o
consumidor de informação tenha de optar entre um e outro.
É a verdadeira ‘polarização’, essa palavra que essa
mesma imprensa, de maneira inocente (e burra), quer jogar no colo da esquerda.
Em outros tempos, esse acirramento da polarização entre
presidente e imprensa resultava em impeachment.
Hoje, resulta em descrédito da imprensa.
Não é difícil entender por quê: o embate entre imprensa
brasileira e esquerda é real, tem suas bases em fatos e dados empíricos de
concepção de mundo.
O embate entre extrema direita e imprensa brasileira é
falso, superficial, pois eles compartilham, na prática, as mesmas visões de
economia, Estado e sociedade.
Bolsonaro – com o perdão da palavra – é proficiente
nessa ‘gestão dos contrários’. Ele quer ser ‘macetado’ diariamente pela
imprensa pois sabe que isso lhe coloca em alta conta por parte significativa da
população que abomina o jornalismo.
É o que lhe basta.
É curioso ver como aceitamos tudo isso, depois de
experimentar mais de uma década de democracia real, com governantes reais e
participação concreta da população.
Mas também é curioso ver a que nível chegamos em termos
de ingenuidade leitora na arte de codificar o processo político que nos esmaga
(o alerta vale para a esquerda).
Bolsonaro – lamento a expressão – não sai à ruas para
dar o exemplo contrário ao isolamento. Ele quer chocar a esquerda, tirá-la do
sério, surpreendê-la mais uma vez para que ela enuncie, do alto de sua
‘superioridade moral’: “ele não me surpreende”.
É o esfarelamento dos processos de interpretação,
renovado a cada instante, a cada lance, por esse efeito colateral da impostura
e do ódio que habita o ‘Palácio do Planalto’ (outra velharia
arquitetônica-semiótica desconectada de seu tempo e de sua razão de ser).
Há ainda mais uma ironia, cujo merecimento nos roça o
ceticismo pequeno-burguês: antes da pandemia, Bolsonaro mal se dispunha a
colocar os pés nas ruas.
Cancelou a maioria dos atos públicos do governo por
medo de ser vaiado e hostilizado, uma vez que o governo não apresentava
qualquer sinal de retomada econômica.
Tão logo as ruas se esvaziaram em função da quarentena,
ele recobrou sua ‘coragem’ e passou a desfilar publicamente com rara
desenvoltura e entusiasmo.
As ruas ideais para o desfile de um presidente
anti-povo são assim: semi-desertas.
Este indivíduo – cujo nome aterroriza a alma –
prosseguirá com suas saídas, que serão cada vez mais intensas, seguindo o ritmo
do empilhamento de cadáveres que se aproxima.
O governo segue retardando as estatísticas da pandemia
brasileira, sob olhares incrédulos da imprensa e da classe média que se recolhe
porque pode se recolher.
O atraso deliberado – e criminoso – em fazer chegar o
benefício de seiscentos reais aos brasileiros trabalhadores está absolutamente
conjugado com a política genocida do Ministério da Saúde, que capitula diante
da presidência, mesmo tendo o dobro de popularidade.
Pergunta técnica: quem liga para o Datafolha a essa
altura dos acontecimentos e da dominância semiótica avassaladora de um
presidente sustentado por nossos pavores?
Bolsonaro – não mais me desculpo desde a última menção
passada em branco que o leitor atento deve ter estranhado – permanece e vai
dispensando as sentenças explicativas.
Ele foi imunizado politicamente por nossa covardia
estrutural que, desde sua apologia apaixonada a um torturador em pleno
Congresso Nacional, vai lhe estendendo o tapete vermelho-sangue para seu
icônico desfile nas ruas desertas, que esfrega nas nossas caras o quanto somos
vulneráveis e bem comportados – como o próprio gado que lhe serve.
Fonte:
Jornal GGN