Quarta, 27 de maio de 2020. No momento em que escrevo o
prefácio ao “Relações Obscenas”, um pouco mais da metade do Brasil assiste pela
televisão e pela internet, confinada em uma prolongada quarentena contra o
vírus Covid-19, grupos ralos e ruidosos que invadem as ruas e, protegidos por
coturnos, clamam por ditadura e incitam aos correligionários que se armem;
carros e buzinas transformados em instrumentos de guerra; ações policiais
contra a direita dissidente do regime extremista de direita; e, enfim, uma
reação do Poder Judiciário contra a escalada antidemocrática empreendida pelo
presidente eleito em 2018, Jair Messias Bolsonaro, com a ajuda de seus “enfants
terribles”, os número 01, 02, 03 e 04[1], todos eles atendendo pelo sobrenome do
Nero brasileiro que incendeia o país enquanto grita alegremente impropérios,
delira e destrói. Nesse dia 27 de maio, já se registram mais de 25 mil mortos
pela Covid-19 e a indiferença oficial aos vitimados pelo vírus é o dado
definitivo desse momento da história em que os brasileiros vivem sob a
hegemonia da crueldade.
“O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos
construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa.
Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer. Que eu sirva para
que, pelo menos, eu possa ser um ponto de inflexão, já estou muito feliz”[2], afirmou Bolsonaro em março de 2019,
pouco mais de três meses depois de sua posse, num jantar na embaixada
brasileira em Washington com a nata da extrema-direita mundial: Steve Bannon, o
ex-estrategista de Donald Trump; o acadêmico Walter Russell Mead; a colunista
do Wall Street Journal Mary Anastasia O’Grady; e o editor da revista
literária The New Criterion, Roger Kimball. Manteve do seu lado Olavo de
Carvalho, a quem apresentou como um inspirador. “Em grande parte, devemos a ele
a revolução que estamos vivendo”, disse.
Bolsonaro tem cumprido rigorosamente o que prometeu. A
destruição é a marca do governo de extrema-direita cujo advento coroa uma
articulada ação reacionária, pacientemente construída desde a eleição do
primeiro presidente de esquerda no Brasil, o petista Luiz Inácio Lula da Silva,
em 2002. O protagonista da solução final é um presidente de extrema-direita
alucinado, atormentado por delírios paranoicos, avesso a qualquer traço de
humanidade e um inconteste comandante de um exército de enlouquecidos,
extasiados pela possibilidade de ascensão ao poder. E ele apenas existe porque
antes dele existiu Mensalão e Lava Jato; porque antes pontificaram a Justiça
injusta e a Constituição inconstitucional dos togados Joaquim Barbosa, Luís
Roberto Barroso, Alexandre Morais, Edson Fachin, Carmen Lúcia, Dias Toffoli e
seus pares; porque usurparam de seus poderes juízes como Sérgio Moro e
procuradores como Deltan Dallagnol. Porque os “heróis” da luta contra a
corrupção não eram heróis, apenas uma troupe que encenava roteiros moralistas
de uma peça de propaganda ultraconservadora.
Bolsonaro apenas existe porque antes dele houve a
tessitura do clima do horror: a criminalização de setores da esquerda, o
ativismo político do Judiciário e a militância golpista da imprensa tradicional
do país. A Casa Grande montou cada peça desse xadrez, e mais uma vez com a
ajuda da direita internacional – assim foi no pré-1964, com a ajuda do Ipes e
do Ibad, financiados pela extrema-direita e pelos serviços de inteligência
norte-americanos; assim é desde os preparativos para o tiro final contra o PT
em 2015, quando um Congresso fortemente financiado para golpear as instituições
feriu de morte a democracia brasileira, interrompendo o mandato da presidenta
Dilma Rousseff.
Nesses dias que se sucederam a uma escalada
bolsonarista contra o Supremo Tribunal Federal (STF), em resposta a denúncias
feitas por Sergio Moro, a história mostra ao ex-juiz que aceitou
rapidamente um ministério no governo extremista de direita a ironia que
envolveu suas escolhas políticas. Moro é agora o perseguido pelo staus quo – e
se conta agora com a proteção da Suprema Corte, tem contra si um clima
permanente de crise institucional alimentado pelo bolsonarismo para constranger
as instituições e, se necessário, intervir com o uso da força. Foi esse o clima
mantido permanentemente pela Lava Jato desde o seu início, em 2014 (não por
coincidência, o ano de eleição presidencial). A ironia da história é que, ao
fim e ao cabo, o Moro que denunciou Bolsonaro e por ele é ameaçado é o mesmo
que o elegeu.
A Lava Jato que prometia acabar com a corrupção do país
se mostrou apenas um instrumento político das elites brasileiras, encerrada em
si mesma: não existe Lava Jato para além da armação destinada a tirar o PT do
poder, encarcerar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e permitir a
ascensão da direita. O resto é fake news.
Esse processo termina agora numa cisão entre facções de
classe e uma situação extremamente perigosa em que o grupo vitorioso é um
exército de lumpens comandado por um Napoleão de sanatório que tem apoio das
Forças Armadas, dos corpos policiais nacional e estaduais e das milícias que
corroem a dignidade da população pobre nas periferias da grandes cidades
(normalmente sob a liderança de egressos das forças policiais e militares). E
encerra uma verdade incontestável: o Moro que sai de vítima do governo é o
mesmo Moro que pariu Bolsonaro. A vítima é o algoz. Ambos são a mesma coisa.
Não existe Moro sem Bolsonaro. Não existe Bolsonaro sem Moro. A operação Lava
Jato foi a mensageira da destruição de um país que um presidente cruel quer
completar. O STF, hoje atacado pela horda bolsonarista, é parte: rasgou a
Constituição em 2005, quando passou a ser cúmplice do desastre que se
avizinhava com o forjamento de um senso comum segundo o qual os governos do PT
eram intrinsicamente corruptos e que o lugar da esquerda era na cadeia – a
original saída de condenar sem provas pelo instituto do “domínio do fato”
ficará na história da mais alta corte brasileira, marcada em brasa na sua pele.
O ministro Teori Zavaschi – o relator da Lava Jato que dava substância jurídica
às investigações do caso artificialmente montado por um obscuro juiz de
primeira instância do Paraná que ganhou notoriedade nacional – morreu em
um acidente aéreo em 2017, e a partir dessa tragédia a máscara do Judiciário
caiu completamente: o STF deixou de ser uma corte constitucional para tornar-se
o carrasco que leva à forca qualquer um que se configure obstáculo à volta dos
donos de poder de fato ao poder de direito. A cruel elite brasileira conquistou
a maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) antes de embarcar com armas,
bagagens e financiamentos de campanha na eleição da extrema-direita, em 2018.
Não por outro motivo pareceu tão natural que Moro, juiz
concursado, no governo Bolsonaro, fosse escolhido ministro de Bolsonaro nas
primeiras horas após a declaração da vitória eleitoral do representante da
extrema-direita.
Os últimos artigos colhidos para esse livro foram
escritos nos estertores do ano de 2019, quase um ano depois da ascensão de
Bolsonaro ao poder. É uma continuação de Relações Obscenas, editado em setembro
do ano passado com a ideia de documentar, para a história, a verdade escrita
pela VazaJato. A divulgação das conversas entre os integrantes da Lava Jato
feita pelo site The Intercept a partir de 9 de junho de 2019 – material colhido
pelo hacker Walter Delgatti das conversas entre os procuradores, policiais e o
próprio Moro em chats do Telegram – prova que juiz e procuradores “armaram”
condenações, manipularam provas, induziram delações e, junto com a mídia
tradicional brasileira, conservadora e oligárquica, construíram o clima que
resultaria no impeachment da presidenta petista Dilma Rousseff no final de
2015. E, de quebra, entregaram o poder, de bandeja, a Bolsonaro, em 2018. A
denúncia do golpe promovido pela aliança entre a cruel elite brasileira, a
mídia oligárquica e o Judiciário (que concedeu ao juiz de primeira instância
poderes extralegais e direito de condenar sem provas, impunemente e sob seus
aplausos) e da prática de “lawfare” nas sentenças condenatórias que levariam
Lula à prisão foram fartamente comprovadas pelos diálogos. Lula, de fato, foi
sacrificado na luta sem tréguas da elite brasileira para tirar a esquerda do
poder. O Brasil foi sacrificado. Depois do golpe de Estado de 2015, houve uma
fraude eleitoral com o uso do substrato cultural cultivado pela Lava Jato para
a elaboração de uma campanha sórdida de fake news pelas redes sociais contra o
candidato do PT, Fernando Haddad. Mais uma vez, repetindo, e sempre à exaustão:
Moro é Bolsonaro, Bolsonaro é Moro. E ambos não existiriam sem o STF.
Após a edição de Relações Obscenas, parte da grande
mídia que havia se ajuntado ao The Intecept para divulgar os diálogos recuou.
Houve um hiato que tirou a visibilidade das denúncias. Os últimos
acontecimentos que levaram o país uma crise institucional extrema – quando o
livro for para a gráfica, ainda não saberemos se Bolsonaro efetivou o golpe
contra a democracia – deixam o país cada vez mais próximo de uma ruptura
institucional. A escalada se intensificou desde a divulgação, pelo STF, das
imagens de uma reunião ministerial do dia 22 de abril de 2019, onde impropérios
contra os outros poderes e articulações para saquear a economia são troco perto
da declaração principal de Bolsonaro: iria, sim, armar a população, para “lutar
pela liberdade”. Depois disso, a palavra “guerra civil” passou a fazer parte
das ameaças do governo eleito pelo voto direto, inclusive nas notas de
ministros oriundos das Forças Armadas, seus seguidores da reserva e os
comandantes militares.
O Exército bolsonarista, neste momento, rompeu com as
demais frações da classe dominante que deram o golpe na esquerda em 2015 e
colocaram Lula na cadeia em abril de 2018. O incrível exército de
desclassificados de Bolsonaro deu um passa-moleque na elite que considerava a
hipótese de manietar o presidente que apoiou para realizar o programa
ultraliberal de seu ministro Paulo Guedes (o pretexto dos setores conservadores
para apoiar, nas eleições, um cabo do Exército, extremista caricato e
ignorante). Bolsonaro cumpre a promessa de Guedes, mas o governo é ele.
É nesse momento de crise extrema que a chamada
VazaJato, que divulgou os diálogos do braço jurídico de sucessivos golpes
desferidos contra a democracia, volta a ganhar importância. Se Bolsonaro fosse
tirar uma radiografia, teria mostrado em suas entranhas o tumor do golpe
desferido contra Dilma, Lula e a imensa maioria os brasileiros que têm horror à
ditadura. A Lava Jato foi o câncer; Bolsonaro, sua metástase.
A indignação com a crueldade e com a injustiça é o
legado que devemos deixar quando denunciamos, para que se registre na história,
que o povo e a democracia brasileiros, na última década, são vítimas de uma
elite vil, que prefere sacrificar a própria democracia a “conceder” a um
projeto socialdemocrata de inclusão social onde pobres, pretos, mulheres,
índios, quilombolas e LGBTs aspirem à igualdade.
Por essa razão abrimos essa edição com o capítulo Uma elite cruel. O artigo de Jessé
Souza, “Como Moro e a Lava Jato buscaram destruir Lula e a democracia
brasileira”, mostra a veia aberta de um país dominado por uma elite desumana.
Lula tornou-se o centro do ódio, contra o qual a elite brasileira sacrificou
qualquer valor democrático, porque ela própria não pode assumir que, na
verdade, alimentava o “ódio (…) perverso ao mais fraco, ao perseguido ao
abandonado” – uma verdade tão inconfessável que foi preciso personificá-la “na
figura de seu líder maior”. “Essa é a lei não escrita de toda a sociedade
marcada pela escravidão.”
Eugênia Gonzaga e Luís Nassif, em “Da (não) Justiça de
Transição à Lava Jato”, também apontam nas raízes autoritárias brasileiras a
fragilidade da democracia brasileira. “É a ideologia do direito à eliminação de
um ‘inimigo interno, cultivada à margem do regime democrático, que deságua na
operação Lava Jato”, observam. Não à toa, a Lava Jato se autodenomina
“operação”, “como faziam as forças de repressão dentro da ditadura.”
Em “A força-tarefa e a tarefa da força”, Pedro Pulzatto
Peruzzo e Vinicius Gomes Casalino constatam que a chamada “República de
Curitiba” exerceu a lógica de que “soberano é quem decide sobre o Estado de
exceção”.
No seu segundo capítulo, “Relações Indecentes”
debruça-se sobre A subversão do
Direito. Lenio Streck, em “Diálogos promíscuos: A Vazajato, o
duplipensamento e o ato de tentar enganar-se a si mesmo, ou De como 2 + 2
= 5!”, constata, constrangido, que quando “o Estado passa a desrespeitar os
direitos fundamentais de todos com igualdade”, isso “não é um avanço
civilizatório”. Essa é uma resposta aos que defenderam de peito aberto uma Lava
Jato que atentava contra direitos de empresários e políticos da mesma forma
como a justiça brasileira sempre atentara contra os direitos da classe baixa,
como isso fosse prova de exercício democrático.
Em “A Imprudência Inconstitucional”, José Eduardo
Martins Cardozo e Marco Aurélio de Carvalho acusam: “Os ‘heróis’ [da Lava Jato]
que violaram o nosso Estado Democrático de Direito (…) pagarão o preço pelos
seus atos. A história não perdoa jamais.” Tânia Maria de Oliveira, em “Heróis,
mitos e provas ilícitas: os paradoxos da operação Lava Jato”, constata: a
operação gestada na chamada República de Curitiba nada mais foi do que um
projeto de poder. Nada além disso. “A Lava Jato operou em paralelo, mas em
total consonância com o que acontecia na sociedade, fora do âmbito do sistema
de justiça: o crescimento do bolsonarismo e sua ascensão ao poder.”
Mariana Marujo, em “ ‘As instituições estão funcionando
normalmente’ e outras verdades da justiça burguesa”, consta que, sim, para os
interesses do capitalismo as instituições funcionam e cumprem o seu papel nesse
momento histórico: o de simplesmente servir aos interesses do capitalismo.
No capítulo O
poder de destruir um país, Rosa Maria Marques faz uma radiografia dos danos
causados pela Lava jato à economia brasileira. Em “Efeitos da operação Lava
Jato na economia brasileira”, Marques contata o desmantelamento do setor da
construção civil e do petróleo e do gás no país e o poder destruidor da
República de Curitiba sobre a economia. Marilia Carvalho Guimarães, em “Futuro
Postergado”, faz um triste balanço dos efeitos da Lava Jato sobre a democracia
brasileira.
O capítulo O
poder de destruir pessoas é o desfilar da crueldade da chamada “elite
concursada”, os jovens procuradores que tomaram para si o poder de destruir
reputações, pessoas e famílias. Citando os diálogos entre eles divulgados pelo
The Intercept, “Procuradores da Lava Jato ironizam a morte de Marisa Letícia
(Elika Takimoto), “Entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração. Não são
amigos, mas cúmplices (José Geraldo de Sousa Junior) e “Lava Jato: entre
compromissos hermenêutico/ideológicos e a ignorância” (Everaldo Gaspar Lopes de
Andrade) expõem a imbricação entre Justiça e crueldade de classes: o ódio ao
diferente, ao oriundo de classes sociais inferiores, o horror à igualdade. Em
“Meninos Mimados, Cristiane de Faria Cordeiros traça o perfil desses operadores
de justiça que debocham de suas vítimas, expressão da arrogância do poder de
classe.
O obrigatório capítulo A aliança com a mídia define como questão urgente a discussão
sobre as relações entre os meios de comunicação e o sistema penal. Em
“Publicidade opressiva e Operação Lava Jato”, Simone Schreiber destaca que essa
aliança estratégica tem o objetivo de “obter a adesão da mídia e da opinião
pública a determinadas pautas, criando um ambiente em que qualquer opinião
dissonante ou crítica aos procedimentos adotados e resultados obtidos por esses
atores seja desqualificada e silenciada”. “Esse modelo não é democrático, não é
compatível com o devido processo legal, não se concilia com a carta de direitos
da Constituição Federal de 1988”, conclui. Franklin Martins, em “VazaJato: a
grande mídia briga com a notícia. E perde”, acusa um “vergonhoso concubinato”
entre mídia e Justiça, cuja motivação foi fundamentalmente política. Em “A
VazaJato e o reposicionamento dos jornalões nacionais”, Bia Barbosa faz um
levantamento sobre o comportamento da grande imprensa no período posterior à
VazaJato. Concluído no final de 2019, o artigo aponta certeiramente para o que
veio depois: um pacto de silêncio entre a grande imprensa, que deixou fora das
páginas dos jornais e dos noticiários televisivos as provas de que a Lava Jato
não apenas manipulou informações, mas contou com a ajuda dos meios de
comunicação para isso. Barbosa já previa que as informações da VazaJato
ficariam confinadas à internet.
Os dois artigos do capítulo O uso da religião, “Política e Religião: Dallagnol em campanha
junto à comunidade evangélica” (Marcelise de Miranda Azevedo) e “Neoliberalismo
e Neopentecostalismo: O que há para além do prefixo” (Rute Noemi Souza)
identificam com maestria as circunstâncias em que a fé se tornou arma política
do reacionarismo.
Este livro nasce no meio de uma pandemia e de uma crise
política. E é fundamental para que identifiquemos suas causas. Boa leitura.
[1] Como
Bolsonaro chama os filhos. Pela ordem: o senador Flávio Bolsonaro, o vereador
Carlos Bolsonaro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro e Jair Renan.
Fonte:
Jornal GGN