Raros textos são tão reveladores da má consciência da
mídia sobre seu papel na farsa jurídica da Lava Jato quanto o artigo de Eliane
Cantanhêde (“Nem heróis nem vilões”) no Estadão deste domingo. Em busca de uma
imparcialidade tardia, o texto reflete o dilema atual do jornalismo brasileiro:
como descartar, sem maior prejuízo de credibilidade, os “heróis” que ela criou
ao longo de uma cobertura parcial e politicamente direcionada. E como dar essa
guinada sem fazer justiça ao “vilão” Luiz Inácio Lula da Silva.
O artigo concede que José Genoíno foi condenado no
mensalão “talvez exageradamente” e admite que haveria “alguns excessos” na
sentença do tríplex contra Lula. Mas abordar dois notórios erros judiciais com
a naturalidade de um passeio pelo jardim não é exatamente uma correção de rumo.
É seguir sancionando a instrumentalização do Judiciário e do Ministério Público
como arma de disputa política, como fez nossa imprensa com a Lava Jato do
começo ao fim, que agora parece necessário e inexorável.
A cobertura da Lava Jato entrou em curto-circuito junto
com a operação em si porque nem uma nem outra se sustentam em fatos e provas,
mas na simbiose típica dos julgamentos midiáticos. Nesta semana em que se
comprovou a relação indecente e ilegal da força-tarefa com o FBI, Deltan
Dallagnol ganhou mais tempo para se defender no Jornal Nacional que os
advogados de Lula ao longo de cinco anos. Não custa lembrar: de janeiro a
agosto de 2016, o JN somou 13 horas de noticiário negativo contra Lula,
preparando a denúncia do powerpoint que hoje se volta contra
Dallangnol.
O tratamento editorial abusivamente desequilibrado da
Globo ditou a cobertura da mídia e de seus colunistas, que hoje se agarram nas
“provas robustas”, jamais exibidas, do caso Atibaia. Da mesma forma que na
desmoralizada ação do tríplex, também neste processo Lula foi condenado por
“atos indeterminados”. E a prova mais “robusta” dos fatos é um laudo técnico,
ignorado por Sergio Moro e censurado pela Globo, mostrando que foi depositada
para um executivo da Odebrecht, e não para “obras no sítio”, a tal transferência
de R$ 700 mil incluída na sentença.
O reconhecimento da farsa judicial contra Lula não é,
portanto, uma questão de “simpatia” pelo ex-presidente ou pelo PT, por parte de
um procurador-geral indicado por Jair Bolsonaro, muito menos dos ministros do
Supremo Tribunal Federal, como propõe o artigo. É uma imposição de justiça,
diante da qual autores e cúmplices não imaginavam ter de prestar contas tão
cedo. Uma questão objetiva, a ser examinada à luz da lei por instituições que,
por definição, têm de preservá-la e preservar-se acima de circunstâncias
políticas.
É tão fácil quanto fútil afirmar que o PT, Lula ou quem
quer que seja “demoniza” a Lava Jato, sem enfrentar objetivamente a suspeição
de Moro e a dos procuradores, como sustenta a defesa do ex-presidente em dois
pedidos de habeas corpus que tramitam no STF. Ninguém foi mais demonizado neste
país do que Lula, seu partido e sua família, por uma imprensa que erigiu falsos
heróis e agora se vê na contingência de descartá-los, como fez com Aécio Neves e
Eduardo Cunha quando perderam utilidade.
O dilema da mídia – e dos interesses que vocaliza – é
lançar fora o veneno da Lava Jato preservando seu principal efeito, que foi a
proscrição política de Lula. E, se possível, reconstruir o mito Sergio Moro, o
que exige falsificar duas vezes a história.
Em primeiro lugar, a Lava Jato não
combateu a impunidade: negociou-a no balcão das delações que premiaram 99% dos
acusados. E foi com a cobertura da mídia que Sergio Moro “fez a diferença”,
demonizou Lula, o PT e a própria política, abrindo o caminho para Jair
Bolsonaro, o filho que agora rejeitam.
(*) Ricardo
Amaral e José Chrispiniano são jornalistas, assessores do PT e do ex-presidente
Lula.
Fonte:
Jornal GGN