Quando falta a virtude combativa, a capacidade e a
criatividade, a fortuna tende a triunfar contra a vontade e os
projetos dos atores políticos. O Brasil vive um daqueles momentos, não raros
aqui, no qual nenhuma força política consegue imprimir direção e sentido aos
acontecimentos políticos. Bolsonaro quer dar um golpe e não consegue, as
esquerdas querem o impeachment e não conseguem e setores de centro e de esquerda
querem formar frentes e não conseguem. Poucas forças políticas organizadas e
atores sabem realmente o que querem, neste momento, ou sabem o que fazer.
Talvez Rodrigo Maia, Lula, os militares que estão no governo e Ciro Gomes,
todos em parte? Talvez.
O fato é que a conjuntura política nas últimas semanas
se movimentou no sentido de novas tendências ou de uma reconfiguração. O fato
determinante foi o limite à estratégia de autoritarismo incremental que
Bolsonaro e os setores radicais do bolsonarismo vinham incrementando. Este
limite tem alguns vértices. O principal, foi a ação contundente do STF e do
Judiciário a partir investigação e prisão de promotores de atos
antidemocráticos, do andamento do processo das fake news, dos desdobramentos da
fatídica reunião ministerial e da prisão do Queiroz. Pela primeira vez depois
que assumiu a presidência, Bolsonaro viu-se obrigado a passar para uma posição
defensiva.
Três outras linhas de força também contribuíram para o
recuo de Bolsonaro e do bolsonarismo: a sinalização crescente dos militares da
ativa de que não embarcariam em aventuras golpistas e que não querem ver as
Forças Armadas associadas a esses movimentos; o fortalecimento de tendências de
impeachment no Congresso e os incipientes movimentos de rua liderados por
torcidas e outros movimentos sociais que apontam para a tendência de um
crescimento de manifestações contra o governo e enfraquecimento das
mobilizações bolsonaristas.
Bolsonaro acusou o perigo: acelerou o pedido de socorro
ao centrão e aos militares, sacrificou Weintraub e os bolsonaristas radicais,
que se revelaram grupelhos, foram intimidados pelo STF e sofreram uma espécie
de esfriamento no interior do próprio bolsonarismo mais geral. O perigo que
Bolsonaro corre é o que pode vir do caso Queiroz. Não se sabe realmente se o
que pode vir tem a força de causar um grande estrago a Bolsonaro ou apenas ao
seu filho, senador Flávio. O inquérito das fake news também tem algum perigo
potencial, mas, aparentemente, de menor teor explosivo.
Desta forma, com os 32% de apoio popular, com a
aceitação da tutela militar, com o abrigo do centrão, com o recuo na estratégia
de autoritarismo incremental e com a inexistência de grandes mobilizações de
rua, ao contrário do que dizem analistas extraviados de esquerda, Bolsonaro não
sofre perigo de impeachment no curto prazo.
Mas outro perigo pode estar logo
ali na frente: o desastre econômico e social que já se evidencia por conta das
consequências da pandemia e de falta de programa econômico do governo pode
alterar os ânimos e as tendências políticas.
Para que um cenário de impeachment se coloque com
força, a conjuntura deve reconfigurar-se drasticamente a ponto de ser capaz de
empurrar partidos e parlamentares de centro e de direita para o lado do impedimento
do presidente. Por ora, não há sinais nesse sentido. Isto não significa que a
oposição de esquerda, por diversas razões, mas principalmente por uma questão
de dignidade nacional e de defesa da democracia e dos direitos, não deva lutar
pelo impeachment. Para isso, precisa saber ler a conjuntura e saber agir nela.
Em artigo anterior (O extravio das esquerdas) apontei
para alguns erros de avaliação de conjuntura dos partidos de esquerda. O
primeiro e, mais grave, era e em parte ainda é, o de que Bolsonaro, junto com
os militares, dariam um golpe. As esquerdas, que oscilam entre o medo
(apavoradas com o golpe) e o ufanismo pueril (iminência da queda de Bolsonaro),
confundiam os desejos de Bolsonaro e dos bolsonaristas com a realidade efetiva
das coisas da política brasileira. Perderam mais de um ano na inconsequência
analítica e nos erros táticos e estratégicos.
O segundo erro consistiu e, em parte ainda consiste, em
classificar o governo como fascista. Que Bolsonaro e bolsonaristas têm posições
fascistas, não resta dúvida. Mas daí a classificar o governo como fascista é um
erro elementar que não resiste à análise comparativa histórica do que foi o
fascismo e à análise conceitual.
Em consequência desses dois erros de avaliação, as
esquerdas se enredaram na inócua discussão das frentes: Frente democrática,
frente antifascista ou frente democrática e popular. A discussão é inócua
porque colocaram a forma na frente do conteúdo, o formalismo na frente das
lutas. O mais importante era articular lutas e construir unidades em torno
delas. Se isto resultaria na articulação de frentes formais ou informais seria
o processo que decidiria. O mais provável, seria a constituição de frentes
informais e pontuais.
Nesse ponto, Lula acerta em não querer integrar uma
frente formal. Mas erra, no meu juízo, quando se nega em participar de um ato
pontual em defesa da democracia. Enquanto isso, a direção do PT fica a deriva,
sem saber exatamente o que fazer. O PSOL não está menos perdido: se,
taticamente, acerta em avaliar que é importante participar de atos pontuais em
defesa da democracia, estrategicamente ainda fica iludido e enredado na tese de
uma frente popular. O PSOL deveria investir na construção de uma unidade em
torno de uma plataforma de lutas concretas e preparar-se para as eleições
municipais sem subordinar seus objetivos eleitorais aos inexistentes objetivos
de uma suposta frente popular.
Setores do PT e do PSOL comungam do mesmo erro quando
pensam que as eleições municipais serão uma espécie de plebiscito contra Bolsonaro
e que deve se formar uma frente eleitoral antifascista e pela democracia. Em
primeiro lugar, Bolsonaro não se apresentará com uma força própria nessas
eleições. Em segundo lugar, os partidos de esquerda devem combinar dois
critérios na definição de suas táticas eleitorais: 1) o critério do
fortalecimento do campo democrático e popular; 2) o critério dos objetivos
eleitorais de cada partido. Pelo primeiro critério, onde houver alguma chance
de vencer com um candidato de esquerda, os partidos devem se coligar. Pelo
segundo critério, onde não houver essa possibilidade, cada partido fica livre
para buscar se fortalecer sem, necessariamente, excluir alianças.
Assim, PT e \PSOL precisam se desenredar de seus
equívocos e definir melhor seus objetivos estratégicos e seus movimentos
táticos. Nesse sentido, Ciro Gomes, a seu modo, parece ter mais clareza aonde
quer chegar. Estrategicamente, quer aglutinar um novo campo de forças de
centro-esquerda e de centro, a partir de um programa nacional, para disputar as
eleições de 2022. Taticamente, busca defender bandeiras de luta e fazer
alianças eleitorais nas eleições municipais que encaminhem o fortalecimento de
seu projeto maior.
Para viabilizar seu projeto, Ciro precisa rivalizar com
Lula e o PT, pois é com o que ele chama de lulopetismo que ele disputa a
hegemonia. O PT precisaria encontrar uma maneira de desarmar essa armadilha. Se
bater forte em Ciro, tende a fortalece-lo. Desta forma, deveria agir no campo
político, programático e, principalmente, na mudança de sua postura hegemonista
para recompor um campo de alianças. Reduzir o PT a uma aliança com
o PSOL representaria um estreitamento e uma enorme perda de capacidade política
do PT. E o PSOL, por seu turno, não pode subordinar seus objetivos aos interesses
do PT, pois o partido precisa construir-se num terreno político que o PT não
ocupa ou deixou de ocupar. O terreno das periferias e dos novos movimentos
sociais, setores órfãos de organização e representação política.
Aldo
Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política (Fespsp).
Fonte:
Jornal GGN