Políticos, pesquisadores e a sociedade contrária ao
modelo autoritário de Bolsonaro defendem a formação de uma frente ampla. Esse
ideal de luta conjunta de todos aqueles no espectro democrático da sociedade
esbarra em diversos problemas, desde a sua estruturação política, até a qual
ponto isso conseguiria de fato pôr um freio no autoritarismo vigente. Para além
dos aspectos práticos de fazer com que pessoas com visões de mundo tão díspares
se aglutinem em um só polo, cabe destacar a postura dos dois maiores líderes da
esquerda neste momento: Lula e Ciro Gomes. Para explicar o comportamento desses
políticos irei recorrer a uma visão de moralidade baseada nas pesquisas de
Jonathan Haidt, psicólogo e professor da New York University.
Recomendo
fortemente a leitura de seus trabalhos para uma compreensão mais complexa dos
fenômenos e discursos políticos que tem afetado a nossa sociedade. As pesquisas
de Haidt buscam compreender as características psicológicas da moralidade na
vida, na sociedade e na política. Não estou buscando fazer um perfil
psicológico de Lula e Ciro, mas sim focar nos discursos, nas mensagens que
ambos têm passado para a sociedade e da visão que ambos têm demonstrado com
suas falas e discordâncias públicas.
Para Haidt, as decisões e condutas morais são guiadas
por cinco aspectos principais: cuidado, justiça, lealdade, autoridade e
santidade. Não é meu objetivo aprofundar a discussão sobre cada uma delas, mas
sim focar em duas: cuidado e autoridade. A eleição de Lula em 2002 é um marco
na escolha da moralidade do cuidado como vencedora do debate com a população.
Sua campanha e seus discursos no início do mandato focam no cuidado com os elos
mais fracos da sociedade, o sofrimento causado pela fome e a compaixão. A
moralidade da autoridade, por sua vez, relaciona-se com a obediência, o
respeito e o seguimento de regras postas de forma hierárquica na sociedade.
Políticos capazes de criar e transmitir uma imagem de liderança e respeito às
leis (sejam elas escritas ou não) são os que influenciam os indivíduos que
valorizam esse aspecto da moralidade. A moralidade da autoridade não deve ser
confundida com autoritarismo ou elementos autoritários. Mas sim, compreende as
relações humanas que envolvem conhecimentos diferentes e hierarquias sociais
distintas, que podem inspirar respeito, obediência ou dominação. Importante
destacar que essas visões morais não são imutáveis, pelo contrário, fatores
individuais, sociais e culturais impactam fortemente em mudanças nas visões de
moralidade ao longo da vida. Experiências e necessidades vigentes também
modificam quais aspectos da moralidade serão mais valorizados pelos indivíduos
(cuidado ou autoridade, por exemplo) quando confrontados com decisões morais,
como a escolha de um candidato em uma eleição.
Vamos agora para as eleições de 2018. O contexto social
indicava a necessidade de autoridade forte, mas isso fica mais claro depois do
resultado eleitoral. A compaixão, a gratidão e os elementos de cuidado e
justiça não foram os mais discutidos durante a campanha do candidato vencedor,
mas sim a necessidade de liderança para uma segurança pública mais efetiva e a
necessidade de liderança não relacionada ao chamado establishment político.
Logo, o candidato que venceu as eleições foi o que apresentou mais
características da moralidade da autoridade para realizar as mudanças desejadas
pela população naquele momento político. Bolsonaro encampa esse aspecto com
decisões e falas simplistas e, quase sempre, incorretas no diagnóstico e
resolução dos problemas. O seu famoso bordão “mudar isso que tá aí, talquei?”,
na realidade, traduz um sentimento de alguém que seria capaz de alterar a
realidade de desemprego e insegurança através de sua autoridade, alguém que
dominaria os desmandos e submeteria os políticos, considerados nocivos, à ordem
e progresso. Os aspectos principais desse discurso são o respeito e a
obediência e são traduzidos em linguagem simples por Bolsonaro. Essa mudança da
solidariedade para a autoridade não é automática nem ocorre em saltos. Ela foi
criada e alimentada, em parte, pela Lava-Jato, mas também pelos meios de comunicação.
As necessidades sociais que emergem da crise de 2014-2016, em especial,
emprego, renda e combate à corrupção, bem como a conjunção da Lava-Jato/mídia
tornam esse aspecto moral fundamental nas eleições.
Ora, quem irá resolver os
nossos problemas não podem ser os políticos da compaixão, mas sim uma figura de
autoridade, tal qual os elementos apontados como solucionadores pela mídia e
pela Lava-Jato.
No ano de 2019-2020, a discussão diária sobre a
necessidade de uma frente ampla que consiga barrar o autoritarismo de Bolsonaro
ganha novos contornos. Dois políticos da esquerda disputam a hegemonia e
liderança na área. A solidariedade e o cuidado estão em segundo plano, com uma
pauta prioritária de segurança pública e emprego. A direita, compreendendo e
tendo raízes mais ligadas a essas questões (mesmo que equivocada nas soluções),
consegue apontar a importância da autoridade para o resgate da segurança e da
renda. Interessante observar como no campo da direita vários candidatos
apresentam o mesmo tom nos discursos e a efetividade do mesmo em arrastar boa
parte do eleitorado. Esses políticos estão respondendo a uma demanda legítima
da sociedade para sua resolução de problemas, porém, com quase todas as
soluções erradas. A questão que surge para a construção da frente ampla seria
como destacar uma figura de autoridade que seria capaz de resolver os problemas
sociais.
Para isso, precisaria modificar seu discurso com ênfase no cuidado,
solidariedade e respeito, focando na resolução dos problemas de segurança e do
emprego mostrando ter autoridade para resolver essas questões. Interessante
notar que o importante é passar a impressão de resolução, não necessariamente
comunicar as ideias de forma complexa. Caso você duvide desse ponto, indique-me
três ideias complexas que Bolsonaro apresentou na sua vida política!
Vamos analisar primeiro o discurso de Ciro Gomes. É
possível verificar por diversas vezes essa tentativa de criar uma figura de
autoridade. Frases como “eu estudei isso”, “eu sei fazer” são costumeiras do
candidato do PDT. O primeiro ponto que podemos destacar de seu discurso é que
Ciro busca aprofundar aspectos cognitivos nas análises de resolução de
problemas da sociedade. Ou seja, utiliza-se muito de reasoning (análises
multifatoriais de situações complexas) e parte da audiência perde o interesse
nessa elucubração. Com um eleitorado focado em soluções de problemas e
aceitando autoridades, o foco está em discursos que tenham uma temática mais
simples e direta como “isso aí é fácil, é só vontade política” ou “é acabar com
os marajás/mamata”. Alguém viu esses discursos de solução fácil serem acatados
pela sociedade em eleições? O segundo ponto problemático na figura de
autoridade moral de Ciro é que ela não gera somente respeito, aspecto
fundamental da autoridade, mas também desgosto quando esse realiza suas
críticas. Quando Ciro ataca parceiros próximos ideologicamente causa repulsa,
violando a sua autoridade e a lealdade para com os pares. Inúmeros exemplos
podem ser dados desse aspecto: críticas ao PT, Lula, às pautas identitárias.
Esse discurso afeta a sua convergência com o eleitorado de esquerda
prejudicando que a sua autoridade emerja e seja reconhecida como fundamental.
Nesse aspecto, Ciro como inimigo de si mesmo, como seus adversários políticos
gostam de declarar, é uma verdade. Seus discursos afetam a sua autoridade e o
respeito que pares poderiam ter, impactando negativamente sua liderança
política.
Lula, por sua vez, parece construir seus discursos em
um feeling da sociedade. Ao mesmo tempo, disputa esse espaço da
liderança dos não autoritários, ou dos anti-Bolsonaro, ao tentar se mostrar
como a autoridade capaz de inspirar obediência e respeito de diversos setores.
Um exemplo é a não assinatura dos diversos manifestos pela democracia que estão
ocorrendo, mesmo após figuras importantes do PT, como Fernando Haddad, terem
assinado. Isso é uma tentativa de sinalizar para a população a sua figura de
autoridade que seria capaz de entender os problemas e propor soluções para
liderar a frente contra o autoritarismo. Obviamente, o discurso anti-esquerda e
anti-PT fortalecido pela Lava-Jato e a mídia enfraqueceu muito essa posição de
autoridade de Lula e do PT. Considerando esse ponto, TALVEZ (um grande TALVEZ)
fosse melhor uma candidatura sem a marca PT em locais em que a moralidade da
autoridade ainda se apresenta muito forte! Ao mesmo tempo, Lula entende a
grande oportunidade que se abre para o partido de demonstrar para a população a
sua autoridade em resolver os problemas de renda e emprego. Como o PT e Lula
irão reconstruir parte dessa autoridade com o eleitorado dependerá de
movimentos políticos futuros. Outros eventos, como as manifestações contra o
racismo, por exemplo, podem mudar o balanço moral da sociedade de volta para o
cuidado e a justiça. Isso explica o medo de Bolsonaro dessas manifestações,
pois seu discurso de obediência e dominação pode começar a não ter mais o
efeito desejado para com a população.
A história é escrita todos os dias e como Lula e Ciro
irão construir a sua versão de autoridade ainda está por ser escrito. Contudo,
caso a esquerda queira de fato estabelecer uma frente ampla vislumbro duas
possibilidades. A primeira seria estabelecer uma figura de autoridade política
que seja capaz de congregar os diferentes interesses do campo da esquerda e dos
defensores da democracia. A segunda seria uma transformação da matriz moral
devido a mudança sociais (por exemplo, desemprego em massa, diminuição da
renda, fome). A bússola moral da sociedade sairia de onde Bolsonaro ainda
dispõe de prestígio com parte da população (autoridade) para os campos onde o
discurso da esquerda tem mais possibilidades de convencimento (cuidado e
justiça). Aguardemos os próximos movimentos desse xadrez político.
Autor é
doutor em Psicologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Forense da Universidade
Tuiuti do Paraná (UTP).
Fonte:
Jornal GGN