Há um debate nos setores progressistas da sociedade
sobre a conveniência de serem realizadas manifestações de rua neste momento em
que avança tanto a pandemia da Covid-19 quanto a escalada autoritária de
Bolsonaro. Em relação à pandemia havia até agora um relativo consenso sobre a
prioridade de se manter o isolamento social como método mais eficaz de conter o
avanço da doença. Com base nessa premissa, as lideranças dos movimentos sociais
e dos partidos políticos do campo progressista vinham evitando convocar
manifestações de rua.
No último domingo, quase que espontaneamente, milhares
de pessoas se organizaram para protestar nas ruas contra a escalada autoritária
do governo Bolsonaro. E novas manifestações estão sendo convocadas, por
lideranças dos mais diversos segmentos sociais, para o próximo domingo.
Isso está provocando alertas e até censuras por parte de intelectuais
progressistas. O apelo mais eloquente para que o povo não vá às ruas foi feito
pelo sociólogo Luiz Eduardo Soares no Facebook. Ele começa falando da prática
da extrema-direita de usar infiltrados para gerar o caos que seria a
justificativa que as Forças Armadas esperam para decretar o estado de sítio.
Fala também do artigo ameaçador do general Mourão e da postura claudicante do
procurador geral da república Augusto Aras admitindo a competência de
intervenção das Forças Armadas em outro poder.
O diagnóstico de Soares é correto, porém incompleto. Ao
usar como premissa um diagnóstico incompleto, ele conclui por uma gravidade
inédita que o momento atual não possui. Senão vejamos. Desde quando Bolsonaro
procura instaurar uma ditadura no país? Desde o momento em que assumiu a
presidência. Desde o primeiro dia, Bolsonaro ameaça os brasileiros com
repressão e medidas autoritárias. Na verdade ele defendeu a ditadura desde
sempre. Em que momento Bolsonaro tinha mais chances de fazer avançar seu
projeto de ditadura? Quando ele tinha quase 70% de apoio popular, amplo
apoio do Congresso, quando as instituições estavam completamente acovardadas e
bolsonarizadas? Ou ele tem mais chance de conseguir dar o golpe agora, com
apoio de um pouco mais de 20% de idiotas fascistoides, sem base parlamentar no
congresso, num momento em que as instituições começam a se movimentar para não
serem extintas, quando o povo começa espontaneamente a tomar as ruas para
protestar contra o autoritarismo?
Então a questão não é saber se Bolsonaro quer dar o
golpe. Isso ninguém nega. Até setores da direita hoje sabem disso e por isso se
lançam apressadamente a fazer manifestos, o que diga-se de passagem, é
muito bom. Antes tarde do que nunca. Querer dar o golpe é uma coisa; ter
condições favoráveis é outra bem diferente.
A parte mais questionável da manifestação de Soares diz
respeito à cobrança que ele faz aos segmentos sociais que apontam para as
manifestações de rua como forma de se contrapor ao projeto golpista de
Bolsonaro. Textualmente ele diz o seguinte:
Enquanto
isso, do lado de cá, uns e outros estão melindrados com manifestos conclamando
à união pela democracia. Questionam suas intenções e origens. Não querem ser
usados por adversários que buscam se redimir de erros passados. Ou seja,
perderam conexão com a realidade. O fogo já começou a lamber seus pés.
Despertem, cacete!Nessa conjuntura, movimentos sociais planejam manifestações
para domingo. Pois aqui vai meu apelo. Companheiras e companheiros, vocês não
percebem que Bolsonaro está armando uma armadilha? Vocês acham que terão
condições de impedir que infiltrados promovam quebra-quebra? Não terão. Não
subestimem os fascistas. A P2 fez isso outras vezes, por que não faria agora?
Agitadores fascistas são profissionais da destruição. Sabem como gerar o que os
bolsonaristas e a mídia chamarão “caos”, sabem como reencenar o que a mídia
gosta de denominar “vandalismo”. Se vocês forem às ruas, por mais
organizados que estejam, não conseguirão impedir que provocadores façam o que
Bolsonaro espera desde a posse.
Quer dizer que somente agora que a ficha caiu para os
setores de centro-direita, percebendo a idiotice que fizeram ao colocar
Bolsonaro no poder, os setores mais à esquerda não podem criticá-los? Quer
dizer que temos que nos dar por satisfeitos por essa turma ter tido a brilhante
ideia de lançar um manifesto, o que nos obrigaria a ficar de braços
cruzados esperando que isso nos salve do golpe policial-militar? O próprio
Soares reconhece que Bolsonaro espera uma oportunidade para dar o golpe desde a
sua posse. Então todas aquelas manifestações, reunindo centenas de milhares de
pessoas em defesa da educação, ou estavam equivocadas ou então Bolsonaro não
soube aproveitar a oportunidade.
E por que os fascistas usariam esses conhecidos
artifícios de infiltração e provocação somente agora e não doravante em todos
os momentos? E enquanto eles fizerem isso, ficaremos em casa de braços
cruzados?
Soares prossegue afirmando que as pessoas que forem às
ruas irão propagar o vírus, além de oferecer a oportunidade que os fascistas
aguardam.
Se vocês forem às ruas, e eu adoraria que fossem e eu
estaria junto com vocês, em condições normais, não só vão ajudar a propagar o
vírus em nossos grupos, como vão oferecer a oportunidade que os fascistas
aguardam, ansiosamente, e que têm sistematicamente estimulado.
Quais seriam as condições normais que fariam Soares
recomendar as manifestações de rua? Certamente não foi a intenção dele, mas
quem conduz o povo a uma armadilha não é o governo Bolsonaro, pois conhecemos
muito bem as suas intenções. Quem conduz o povo a uma armadilha é a conclamação
feita nesses termos. Pois a visão esboçada por ele aprisiona o povo naquilo que
é a essência do fascismo, o medo.
O fascismo usa o medo como um elemento central da
estratégia de dominação, cuja principal função é manter o povo alienado e
passivo. Por maior que seja a punção dos fascistas pela morte, a eficiência do
fascismo está em gerar pânico nas pessoas. E é isso que provoca a convocação de
Soares. E é exatamente isso que o governo policial-militar de Bolsonaro
persegue desde a posse. Enquanto as pessoas estiverem aterrorizadas, o projeto
fascista não fica estacionado. Ele avança cada vez mais. Ao invés de retornarem
as “condições normais” para o povo voltar a se manifestar, aprofundam-se as
condições anormais de dominação e opressão. Pelo menos é isso que a história
nos mostra. Nenhum regime fascista foi detido ou derrotado com o povo em casa
esperando o retorno de tempos normais.
O Brasil está há anos vivendo uma situação de
anormalidade, com a corrosão progressiva das bases da democracia. Esse processo
se agrava dia após dia. Nada indica que essa situação mudará somente pelas mãos
da intelectualidade bem intencionada que faz excelentes reflexões acadêmicas e
produz bons manifestos. A batalha, como sempre, será decidida nas ruas. É uma
contingência infeliz que isso tenha que ser feito em plena pandemia. Mas é inevitável
e urgente que as pessoas do povo se manifestem nas ruas, com cuidado, tomando
todas as precauções sanitárias e de segurança possíveis.
O medo é o maior aliado do fascismo. Não devemos ter
medo nem de criticar a idiotice, a ganância e o golpismo dos que colocaram
Bolsonaro no poder, mesmo que se reconheça agora a importância de terem mudado
de lado, nem ter medo de lutar nas ruas pela volta da democracia.
Fora governo fascista de Bolsonaro!
Wilson
Luiz Müller – Integrante do Coletivo Auditores Fiscais pela Democracia (AFD)
Fonte:
Jornal GGN