Começou com a falta de consideração pela chamada
liturgia do cargo, o cidadão se comportando como se fosse um ninguém, que
pudesse fazer e dizer o que lhe vem à cabeça, ignorando, inclusive, as boas
maneiras e a verdade mais comezinha, aquela que pode ser verificada com três
minutos de pesquisa. Como à sua cabeça não vem nada que não seja do repertório
da morte e da escatologia, usou e abusou dos cocôs, das arminhas, da mentira
deslavada. Mas lhe aplaudem. É um sujeito autêntico. Grosso, mas cansados de
políticos engomados, com seus discursos prontos, lhe perdoam.
Depois veio o ataque às instituições. O STF casuístico
e corrupto, o Congresso prevaricador e corrupto, a imprensa mentirosa e vendida
aos interesses dos comunistas. As hienas da nação, ávidas pelo sangue dos
justos que lutam por um Brasil acima de tudo. As instituições reagiram, via de
regra, mansamente. É grave, mas veja bem, o presidente tem seus arroubos. Fala
da boca pra fora. Não quis dizer bem isso.
Convocou a nação contra as
instituições, bom, sim, mas não. Não era contra as instituições, era a favor do
Brasil. E lhe são complacentes.
Em meio a isso, alguns começamos a contar seus crimes.
Crimes de responsabilidade e alguns comuns, enquadrados no Código de Processo
Penal. Há listas que contam dez ou doze. Eles vão se amontoando, a cada dia.
Mas somos benignos, gostamos de dar uma segunda chance. Uma décima quinta
chance talvez. Além disso, não podemos banalizar o instrumento do impedimento.
Na última vez que foi usado, vamos dizer que deu ruim. Os resultados não foram
bem o que pretendíamos. Sejamos prudentes.
Mas, como se sabe, um criminoso impune segue cometendo
crimes. Provavelmente cada vez mais graves. É o caso. Ele passou do patamar de
atacar instituições para o de trucidar pessoas. Para ele, alguns brasileiros a
menos não faz diferença. Um empresário amigo chegou a chutar um número. Seis ou
sete mil, nada de mais. Pior seria um Madero a menos, uma Havan a menos. Afinal
aqueles serão, em sua maioria, velhos e estes morrem de qualquer forma (além de
já inúteis, diga-se de passagem). Que ele também seja um velho pelo seu próprio
critério, é um detalhe. Narciso acha feio o que não é espelho, já disse
Caetano.
O criminoso, logo descobrimos, é um homicida, sua sanha
pela morte é profunda. A dos velhos apenas não o satisfaz. Tem gente demais aí
nas periferias e nas favelas. Como os velhos, esses também vão morrer mais cedo
ou mais tarde. De tiro da polícia, de dengue, de falta de remédio, de qualquer
coisa. Inclusive não é raro que se matem entre si por nada. Por uma briga no
bar ou uma encarada que fulano não gostou.
Morrem. Vivem para morrer. Então, é
preciso convocá-los para trabalhar e consumir seu parco dinheiro na roda da
economia. Ao fim e ao cabo é sua única serventia no mundo. Que se matem no
trabalho e pelo trabalho. De onde saírem os mortos futuros haverá outros
prontos a tomar seus postos.
Podia já ser muito, mas não para o presidente, a
locomotiva homicida. Precisa ainda vestir o jaleco do charlatão e prescrever
remédios como se douto fosse. Tossiu, querida, olha aqui a cloroquina, a
exterminadora do Covid-19. Se é ou não a doença, veremos depois. Se no meio do
caminho “terapêutico” tiver um infarto e uma falência do fígado, bom, melhor
que entre naquela outra estatística lá, na minha só tem cura.
Vestindo o manto do messias, o presidente não cansa de convocar
as pessoas para correrem risco de morte com a promessa de que tem o remédio, o
milagre, o segredo que italianos, espanhóis, franceses, americanos desconhecem.
Afinal, ele ora e jejua.
O pior de tudo é que, se ele fosse louco, haveria um
atenuante. Não é. Ele age de acordo de um ignóbil cálculo político, mesmo que
isso custe a vida dos que atenderem a seu chamado. Qual cálculo? O mesmo de
sempre. Ideologizar tudo. Dividir para conquistar. E também, nunca podemos
esquecer, não se responsabilizar por nada. Ele é safo. Quando morrerem
milhares, será porque seu remédio não foi usado como deveria. Quando a economia
quebrar, a culpa será dos que ficaram contra ele e impuseram a quarentena.
Entre ser um genocida e parecer ter razão, ele escolhe a segunda sem um momento
de hesitação.
Os danos causados por Bolsonaro a este país são
imensos, são profundos e o conjunto de suas consequências só será conhecido a
longo prazo. Mas a herança mais danosa já é possível entrever. É a de tornar a
desigualdade algo que não precisa ser combatido, mas antes, reforçado. É tornar
a ideia de que a vida de alguns vale menos que a de outros, tão presente mas
também tão envergonhada que não era dita, arroz de festa em discursos oficiais.
Ele nunca convocou banqueiros, industriais, executivos, advogados e arquitetos
de renome para trabalhar. Os ricos façam o que quiserem de seu tempo.
Ele
convoca o vendedor ambulante, a empregada doméstica, o balconista, o motorista
do Uber, o entregador do aplicativo, o operário, o cozinheiro e o garçom. Os
substituíveis. Os descartáveis. Os que não serão lembrados porque talvez nem
endereço tenham.
Num país divido desde que o primeiro escravizado pôs
seus pés aqui, Bolsonaro, na Presidência da República, o lugar simbólico do
congraçamento de todos e todas numa igualdade pelo menos imaginária e por isso
sempre buscada, destrói esse símbolo e diz em cadeia nacional que a vida de
alguns não vale a empresa de outros, que o emprego, aquele mesmo que ele se
empenhou em degradar, ainda assim vale mais que a segurança do cidadão
precarizado. Diz para não buscarmos direitos, basta colocar feijão na mesa.
Mesmo que este acabe apodrecendo sobre ela porque cadáveres não comem.
Ele será o responsável pela morte de milhares. Pela
doença e pelos escombros do que destruiu, concreta e metaforicamente. Bolsonaro
extermina vidas, sonhos e o nosso futuro. Para ele, renúncia, impeachment é
pouco. Muito pouco. Precisamos vê-lo no banco dos réus. Precisamos vê-lo punido
por seus crimes hediondos.
Vilma Aguiar é socióloga. Escreve sobre política e
feminismo. Nestes tempos de confinamento, está escrevendo O livro da
quarentena https://www.instagram.com/aguiar_vilma/?hl=pt-br
Fonte:
Jornal GGN