Eu brinquei que iria começar a apoiar Bolsonaro para
ver se assim ele cai, mas essa é uma das técnicas mais invasivas de conquista
de domínio narrativo.
É uma espécie de “vacina”: produz-se ‘agentes
agressores enfraquecidos’ (enunciados debochados, autodestrutivos) e ativa-se
os anticorpos do ‘sangue discursivo’ (a descrença, a desagregação e a
desorientação).
[Nota de emergência: há várias famílias de metáforas no
texto]
É exatamente esse o modus operandi do bolsonarismo.
Eles “roubam” o discurso da esquerda para cancelá-lo. Exemplo: eles atacam a
Globo, atacam a imprensa, atacam o intelectualismo (de maneira folclórica).
Com isso, encurralam o discurso progressista em sua
origem, que é obrigado a se reformular para poder continuar existindo.
Destaque-se que a esquerda não ‘ataca’ a imprensa, mas
‘critica’, o que é diferente. Na semântica dos bolsonaristas, ‘criticar’ é
sinônimo de ‘atacar’ (é um simulacro).
A despeito desse deslocamento do sentido e da ação, o
estrago é feito, porque os sujeitos desgarrados e sem discurso, veem-se, pela
primeira vez, de posse de algum conteúdo supostamente crítico e dotado de
densidade (densidade fraudulenta mas, para todos os efeitos, densidade).
O gesto critico, portanto, é desapropriado. A esquerda
perde aderência no cenário das codificações políticas e vai vendo o seu
discurso se tornar cada vez mais rarefeito.
Esse foi o processo que nos dominou até aqui, desde o
enfraquecimento do governo
Dilma em 2013, com o auxílio empenhado do nosso
jornalismo, dos maus perdedores políticos e da classe média, que viu uma chance
de dar um significado às suas vidas desinteressantes, expropriando um discurso
pronto e aprovado, tomando-o para si com o sinal trocado (o sinal do vazio
político).
Esse processo chegou ao seu ápice e agora começa a ser
estilhaçado pelas pressões do esgotamento.
E a maior pressão é o coronavírus.
O coronavírus é um choque de realidade no discurso
delirante do bolsonarismo e na negligência temática habitual da nossa imprensa
de cativeiro.
Ele mexe com as pessoas, com a economia, com a
sociedade, mas, sobretudo, mexe com o discurso (com a semântica).
Não é surpresa, portanto, que comece a proliferar
acumulações discursivas do mais invasivo deboche, agora, contra a direita.
O campo da esquerda parece ter perdido o medo e o pudor
de ser vítima da patrulha interna e passou a operar no limiar da disputa narrativa
sem amarras falsamente morais.
Dizer-se bolsonarista por troça passa a ser um gesto
alçado ao requinte mais sofisticado da produção de humor revolucionário (porque
político).
Antes, não se podia brincar com um progressista,
fingindo-se ser bolsonarista. Os ânimos estavam acirrados demais.
Agora, é quase uma piada leve fingir ser um
bolsonarista idiota, raso, racista, burro, suicida e corrupto.
O significado desse novo fenômeno de discurso é
evidente: o bolsonarismo se enfraqueceu vertiginosamente, e é apenas uma tripa
esfarelada do que um dia foi.
Essa doença chamada antipetismo (codinome
‘bolsonarismo’), vai se retraindo como uma pandemia que perdeu força –
evidentemente para voltar daqui a alguns anos mais forte e renovada, numa nova
cepa de ódio e desvario libidinal.
É interessante observar os movimentos do discurso e da
linguagem nesses tempos de conflagração e extrema polarização política.
A direita se conecta com a linguagem, por exemplo, de
maneira diferente da esquerda. Para a direita a linguagem é uma ferramenta e
deve ser utilizada apenas para se chegar a objetivos específicos de conquista
de poder. É uma relação utilitarista.
Para a esquerda, a linguagem é a extensão de sua
própria identidade, um encadeamento simbólico atravessado por premissas morais
no limiar do sagrado, quase ao sabor da ética cristã.
Mentir, para um progressista – ainda que plenamente
possível, comum e, em certos casos, endêmico -, é uma provação. Mentir, para um
conservador dessa nova extrema direita, é apenas um modo legítimo de se
conquistar o poder e repelir a ameaça do ‘comunismo opressor’.
É daí que vem a eterna divisão da esquerda e a união
estrutural da direita.
Sujeitos autoidentificados como esquerda se policiam
uns aos outros, na premissa de que é preciso monitorar a si mesmo para que não
se ‘cometa erros’ – e dentro do pressuposto da ciência (a esquerda não nega a
ciência) de que teses existem para ser refutadas e aprimoradas.
Sujeitos autoidentificados como direita não se
patrulham, investem em um simulacro de liberdade em que o dizer é livre (daí,
as apologias ao nazismo, ao genocídio, à tortura) e surfam em uma subjetividade
destituída de superego e de controle (o controle é para os outros).
São evidências do mundo da produção de sentido, na
dimensão da análise de discurso francesa, ferramenta teórica assaz ignorada
pelos setores políticos mais intelectualizados.
Muitos intelectuais temem a linguística porque ela tem
o poder de desmascarar falácias da filosofia e das ciências humanas de maneira
geral.
Na emergência de se fazer a crítica qualificada às
atrocidades enunciadas pelas ciências humanas ao longo dos séculos, optou-se
pela conivência palaciana.
Intelectuais encarnaram, em grande medida,
conservadores e reacionários, tentando fazer preservar preceitos das gramáticas
normativas para suas incursões no campo da linguagem humana.
O preço é Olavo de Carvalho. É o terraplanismo. É o
antipetismo. É o bolsonarismo (é o nosso jornalismo e o nosso intelectualismo).
Quando as técnicas avançadas de análise linguística
chegarem ao mundo da comunicação política, talvez, um salto de qualidade emerja
ávido por significações na seara do debate público.
As gigantes da comunicação (Google e Facebook) já
entenderam isso faz tempo e mobilizam os melhores profissionais do mundo da
ciência da linguagem nos bastidores de sua estrutura de inovação tecnológica e
digital.
Enquanto isso, vamos enfrentar, no Brasil, o vírus do
dinheiro e da urbanização irrefletida (o coronavírus) e o vírus do antipetismo,
que já devastara há tempos a nossa capacidade de se travar desafios no debate
político.
Vamos encarar essa batalha. Ninguém disse que seria
fácil.
Fonte: Jornal GGN