Ao ideologizar a
questão do confinamento, Jair Bolsonaro antecipou a discussão sobre as
consequências econômicas da pandemia do coronavírus ao levantar o fantasma do
caos econômico e do apocalipse empregatício com o aparente objetivo de tentar
reanimar os adeptos do “discurso do ódio” e os empresários assustados com a
queda dos negócios.
Essa mudança no
contexto político nacional no momento em que a doença começa a ganhar um ritmo
acelerado nas principais capitais brasileiras colocou a imprensa diante do
dilema de dar meia volta em toda a campanha a favor do confinamento social ou
entrar em rota de colisão com o capitão-presidente.
A Folha de
S.Paulo e a TV Globo foram as empresas que reagiram mais rapidamente e
passaram a uma crítica sistemática das decisões oficiais no combate à pandemia,
assumindo um protagonismo que vai azedar ainda mais as relações entre duas das
mais importantes organizações da mídia nacional e o Palácio do Planalto.
Ao ideologizar o
debate sobre o combate à pandemia, Bolsonaro tenta recuperar os pontos perdidos
nas pesquisas de popularidade em favor de governadores estaduais, prefeitos das
grandes capitais e até mesmo do seu ministro da Saúde. Mas ele provavelmente
não se deu conta de que a dinâmica da mobilização nacional contra o coronavírus
pode conduzir a uma mudança significativa na economia e nos comportamentos
sociais da população brasileira.
Folha e Globo
optaram por uma estratégia editorial que pode levá-las à necessidade de rever
alguns procedimentos jornalísticos, tendo em vista as características especiais
do tipo de crise que o coronavírus está criando no planeta inteiro. É o
primeiro grande trauma social, político, econômico e científico de natureza
global, incontrolável e com fluxos informativos em tempo real.
Tudo indica que
raríssimos países conseguirão sair incólumes da disseminação do vírus, mas a
contaminação não acontece simultaneamente e não segue o direcionamento de
epidemias anteriores. O coronavírus migra dos países ricos para os pobres, que
tradicionalmente sempre estiveram na origem de focos de contágio de
enfermidades infecciosas. Além disso, o coronavírus registra, no momento,
diferentes estágios de evolução; alguns países já consideram a epidemia em vias
de desaparecimento e, em outros, ela ainda nem começou.
As quatro fases da
pandemia
Segundo
especialistas em saúde pública, uma pandemia normalmente passa por quatro
estágios antes de desaparecer. O primeiro é o da tomada de consciência diante
da gravidade potencial da doença. O segundo é o do compartilhamento das
estratégias e medicamentos no combate ao vírus. O terceiro é quando a
solidariedade entre as pessoas surge como o principal recurso contra o caos
hospitalar e contra a desorganização da economia. A quarta e última fase
acontece quando os sobreviventes enfrentam a dura tarefa de reconstruir as
estruturas sociais, políticas e econômicas destroçadas pela pandemia.
No primeiro e no
segundo estágios, o trabalho da imprensa obedece às normas gerais de produção,
edição e publicação de hard news, ou seja, fatos novos que documentam o
surgimento e evolução da intensidade da pandemia, bem como formas de combater
os efeitos da doença. É a etapa que está sendo vivida por um grande número de
países, especialmente os Estados Unidos e nações da Europa. O terceiro estágio
marca uma mudança significativa nos dilemas a serem enfrentados pelos veículos
de comunicação jornalística. As hard news já não são mais tão
importantes, porque o essencial são informações sobre como as populações
afetadas devem conviver com o confinamento longo, com as limitações de consumo,
com a insegurança hospitalar e com a necessidade de apoio mútuo.
O jornalismo foi
exemplar na hora de disseminar notícias e informações visando criar uma
consciência da gravidade da pandemia e no compartilhamento das estratégias de
combate ao coronavírus. Mas, agora, ele enfrenta o desafio de se reinventar
para mergulhar no esforço de mudar comportamentos e rotinas de uma sociedade
acostumada ao individualismo. É uma missão que foge aos padrões tradicionais da
profissão, porque é mais voltada para o engajamento social do jornalismo e à
orientação informativa do público do que para a divulgação de hard news.
Mudar
comportamentos e valores não é uma tarefa simples e nem rápida.
Normalmente,
seria uma atribuição do marketing social, apoiado pela sociologia e psicologia,
mas, num mundo onde a informação passou a ter um papel primordial no
funcionamento da sociedade, cabe ao jornalismo formatar as mensagens que
circularão nas plataformas digitais. O jornalismo é o curador das informações
que serão distribuídas porque ele sabe, ou pelo menos deveria saber, qual é o
formato mais facilmente assimilável por uma massa de usuários de redes sociais,
por exemplo.
Engajamento
jornalístico
Em São Paulo e no
Rio de Janeiro, os moradores de bairros de classe média afluente já estão
começando a experimentar os desafios da solidariedade. O início é sempre
promissor porque gera situações inovadoras e envolventes do ponto de vista
emotivo, facilmente documentadas pela imprensa. Mas, com o passar do tempo, o
ineditismo desaparece e haverá necessidade de intensificar o fluxo de
informações para que as pessoas continuem criativas na manutenção da
solidariedade no condomínio, rua, bairro ou cidade. É aí que o jornalismo passa
a ser fundamental como alimentador de fatos, dados e eventos capazes de dar
origem a novas ações comunitárias.
A quarta e última
etapa de uma pandemia vai ser construída com base no êxito ou fracasso do
desenvolvimento de um clima solidário no país porque envolve a necessidade de
uma mobilização nacional pela reconstrução do que foi afetado pela pandemia do
coronavírus. Essa ação vai exigir o surgimento de uma liderança carismática e
com alto poder agregador, enquanto a imprensa passa a ter um papel chave na
criação de um consenso nacional em torno do esforço de reconstrução.
Ao criticar o
confinamento, Bolsonaro e seus seguidores inverteram as prioridades porque
focaram na reorganização econômica antes de pensar na geração de uma
solidariedade nacional capaz de unificar o país em torno de um objetivo acima
das legendas e ideologias. Por sorte, a imprensa parece não ter embarcado na
jogada bolsonarista, pelo menos por enquanto.
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Carlos Castilho é jornalista graduado em mídias
eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em
Jornalismo Local.