A dupla crise da
saúde pública e da economia pode vir a ser devastadora. A pandemia não está sob
controle. A recessão é inevitável a esta altura, no Brasil e em grande parte da
economia mundial. A questão é se será possível evitar uma grande depressão,
como a que ocorreu na década de 1930.
E, no entanto, as
piores desgraças têm o seu potencial positivo. É preciso saber enxergá-lo e,
sobretudo, agir para transformá-lo em realidade. Graças à atuação de figuras
excepcionais como Roosevelt, no campo político, e Keynes, no campo da economia,
a crise dos anos 1930 foi aproveitada para mudar os paradigmas em termos de
teoria e políticas econômicas e de políticas públicas em várias outras áreas.
No caso do Brasil,
abre-se a possibilidade de nos livrarmos do pior presidente que já tivemos. Por
pior que fosse o seu desempenho – e foi terrível desde o início –, Bolsonaro
não corria sérios riscos até fevereiro/março deste ano. Ao contrário, estava
nadando de braçada e trabalhando o tempo todo para se reeleger em 2022.
O choque monumental
produzido pelo novo coronavírus e, em especial, a incompetência do presidente,
escancarada na forma como vem reagindo ao desafio, provocou imenso desgaste.
Cresceu o número e a importância dos seus adversários, inclusive
sintomaticamente na direita e até na extrema direita.
Vamos falar com
total sinceridade. Muitos dos atuais opositores do governo, mesmo alguns que já
clamam pela saída de Bolsonaro, não se mexiam até há pouco. As barbaridades
contra a soberania nacional, os assalariados, a máquina pública, a educação, a
cultura, o meio ambiente, a democracia eram muitas e graves – mas nada disso
parecia sensibilizar grande parte da elite, que continuava sobretudo
interessada nas chamadas “reformas estruturais” pregadas por Paulo Guedes e sua
equipe. Elite do atraso, como cunhou Jessé Souza.
Mas agora surgiu
uma diferença fundamental: a inépcia de Bolsonaro coloca vidas em risco – certas
vidas. Não vamos esquecer, leitor, que o novo coronavírus é uma doença de
rico, no sentido de que ela atinge primeiramente os privilegiados, os viajados,
os interconectados internacionalmente. Em outras palavras, é uma doença dos
“globalizados” – foram eles os primeiros infectados e são eles os transmissores
para o resto da população. Sintomático que a África Subsaariana, a região mais
pobre do mundo, tenha sido pouco atingida até agora. Sintomático também que
muitos políticos, empresários e celebridades façam parte da primeira leva de
infectados e de vítimas letais. Sem querer ser cínico demais, cabe perguntar:
se o Covid-19 atingisse apenas os pobres e periféricos, o alarme mundial seria
tão intenso? As epidemias e pandemias podem ser democráticas.
Não quero de forma
alguma negar a gravidade da pandemia, mas apenas frisar que, ao mostrar
despreparo diante dessa ameaça, Bolsonaro entrou em rota de colisão com os
ricos e privilegiados do país. Em consequência, nunca foi tão amplo o espectro
de opositores, enfáticos ou não, declarados e não declarados.
Previsões em
política são tão ou mais difíceis do que em economia. Mesmo assim, arrisco
fazer algumas considerações sobre o nosso futuro político. Uma pergunta que se
pode fazer: persiste a ameaça de um golpe, que seria iniciado por Bolsonaro e
seus aliados mais próximos? Creio que sim, ainda. Mas o risco parece ter
diminuído.
Também não é
impossível um golpe sem Bolsonaro e contra ele, liderado por parte da cúpula
das Forças Armadas. Mas se afigura certamente como muito problemático, pois a
participação no movimento do presidente eleito seria essencial para dar-lhe
alguma legitimidade e apoio popular. Recorde-se que os golpes no Brasil, o de
1964 e o de 2016, para mencionar os mais recentes, necessitam sempre de algum
movimento popular ou, pelo menos, da mobilização de parte da classe média. De
onde sairia o clamor para um golpe sem Bolsonaro e contra ele?
Em todo o caso, o
rápido enfraquecimento de Bolsonaro mudou o quadro. Como é remoto o passado
recente, dizia Nelson Rodrigues. Há um ou dois meses, temia-se que Bolsonaro
estivesse articulando um Plano B de derrubada da democracia, a ser acionado não
de imediato, mas quando surgisse alguma ameaça grave a seu governo.
Escrevi um
artigo na Folha de S.Paulo, “Donald, I love you”, publicado em 16 de
março, que discutia indicações de que este plano de contingência pudesse estar
sendo construído com três pilares: a) a militarização do governo; b) o
fortalecimento das milícias; e c) a construção de uma relação especial com o
presidente Trump. Bolsonaro se desgastou muito, entretanto, e teria mais
dificuldades de partir para uma confrontação.
Dois dos pilares do
plano B ficaram fragilizados. Há indícios, por exemplo, de que os militares,
pelo menos os de alta patente, já não têm mais confiança em Bolsonaro. Não se
sabe ao certo, mas é difícil acreditar que estariam dispostos a uma aventura
golpista liderada por Bolsonaro. Por outro lado, as milícias continuam intactas
e os policiais militares já mostraram seu potencial desestabilizador por
ocasião das greves ilegais que fizeram recentemente em alguns Estados da
Federação. Além disso, os oficiais de baixa patente estariam ao que parece mais
propensos a apoiar uma aventura golpista encabeçada por Bolsonaro. Mesmo assim,
não há, que eu saiba, precedente de golpe de Estado no Brasil que não tenha contado
com a liderança ou pelo menos o beneplácito da cúpula das Forças Armadas, do
Exército em especial.
Quanto a Trump,
dificilmente terá tempo de dedicar atenção a Bolsonaro e seus dramas. Trump
luta pela reeleição e enfrenta uma crise das mais graves de saúde pública. Não
escapará de uma recessão em 2020, antes das eleições de novembro. E o
presidente dos EUA certamente despreza o seu lacaio sul-americano. Americano
não respeita (nem sequer entende) subserviência e concessões unilaterais.
Imagino que esteja até irritado com este lacaio em particular, que se
apresentou há pouco tempo na Flórida com uma comitiva integrada por nada menos
que 23 membros infectados com o vírus, colocando em risco o presidente dos EUA,
seus ministros e familiares. Como notou alguém, o Estado Islâmico bem que
poderia designar o governo Bolsonaro como “parceiro estratégico”, por sua
inquestionável capacidade de colocar em risco a Casa Branca.
Quais são alguns
cenários possíveis? Permita-me, leitor, descrever rapidamente três cenários de
curto prazo. O mais favorável a Bolsonaro, e talvez o menos provável, é que ele
consiga, apesar de tudo, atravessar a crise sem perder o apoio do seu “núcleo
duro” – algo como digamos 25% a 30% do eleitorado. Se conseguir, poderá se
preparar, passada a crise, para disputar com chances a reeleição em 2022. Mas o
despreparo do presidente, que sempre foi visível, o torna incapaz de fazer face
ao desafio. Uma erosão do apoio, mesmo de eleitores fiéis, parece inevitável.
O segundo cenário,
impossível até pouco tempo, é a saída do presidente, por impeachment,
interdição ou renúncia. Com as sucessivas truculências e imprudências, atitudes
alopradas e irresponsáveis, criminosas mesmo, Bolsonaro se isola e abre flancos
para a sua derrubada. A sua posição não está irremediavelmente perdida, mas ele
corre riscos crescentes. As forças que historicamente derrubam presidentes no
Brasil, desde o século passado, parecem cada vez mais propensas a aplicar os
métodos e dispositivos existentes contra o presidente atual.
Terceiro e último
cenário: Bolsonaro continuaria, mas como “pato manco”, sem poder real ou com
pouco poder real. Seria transformado em uma espécie de Rainha da Inglaterra,
que reina, mas não governa. Ou nem sequer reina direito, limitando-se a uma
figuração atabalhoada e folclórica. Alguns trabalham visivelmente com esse
cenário como cenário base, como o mais provável – e já tentam implementá-lo. As
iniciativas ou decisões migrariam, sempre que possível, para o Congresso, para
o Judiciário, para ministros do governo (militares e civis) que gozem de certa
autonomia em relação ao presidente e para os governadores e prefeitos. Essa
solução pode parecer atraente, pois evita os traumas do impeachment, mas tem
percalços evidentes. Um governo assim fragmentado e fatiado não seria eficiente
em fazer face a uma crise como a que estamos começando a enfrentar. A liderança
precisaria partir de um Executivo razoavelmente organizado e crível, sob
comando do presidente da República.
Além disso, o
cenário “pato manco” pressupõe algo difícil de ocorrer com Bolsonaro, isto é,
que ele viesse a aceitar, de forma relativamente pacífica, que lhe colocassem a
canga. O mais provável é que ele esperneie até o fim, tumultuando e talvez
inviabilizando o trabalho dos que tentarem promover a interdição branca. O
louco não é manso.
Paulo Nogueira Batista Jr. é economista, foi vice-presidente do
Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor
executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Acaba de lançar pela editora
LeYa o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém.
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Fonte: Jornal GGN