por
Rogério Christofoletti*
No final de outubro de 2018, afirmei que o resultado
das eleições aumentava
os riscos para os jornalistas brasileiros. Com base nas trajetórias de Jair
Bolsonaro e de Donald Trump, disse que os ataques aos profissionais de imprensa
aumentariam, e que o novo presidente do Brasil insistiria em desacreditar o
jornalismo profissional, preferindo abolir intermediários na sua comunicação
com o país. Infelizmente, Bolsonaro seguiu à risca a cartilha dos autoritários
em seu primeiro ano, e ao menos dois
ataques por semana foram feitos à imprensa no período, segundo a
Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). Se foi assim no começo, o que virá
em 2020?
As incertezas são muitas, mas não se pode duvidar de
uma coisa: a guerra entre Bolsonaro e o jornalismo vai continuar, já que não
temos nenhum indício de trégua e porque os dois pólos precisam desse embate. É
da natureza do presidente alimentar zonas de atrito, pois ao mesmo tempo em que
mantém a temperatura alta entre sua militância, ocupa parte substancial do
debate público com suas polêmicas. Para o jornalismo, o confronto com Bolsonaro
representa algum espasmo para retomar o controle de uma narrativa nacional e a
tentativa de recuperação de parte da credibilidade que pode justificar sua
sobrevivência. Portanto, se alguém imagina que teremos um ano mais ameno no
noticiário, sinto informar que não teremos.
No cargo político mais importante do país, Bolsonaro
continuará fustigando jornalistas e meios, mas precisará ser mais criativo para
impor seus movimentos. Em 2019, usou sua caneta para atingir parte do
financiamento das empresas de jornais. Em agosto, editou medida provisória
desobrigando a publicação
de balanços, e um mês depois, outra MP retirando a necessidade de avisos
públicos de licitações, tomadas de preço e leilões de órgãos da administração
pública. A indústria arrepiou com a possibilidade de ver evaporar cerca de 30%
das receitas de seus negócios. Houve até jornal
que fechou as portas! No final do exercício, ambas medidas caíram por
terra: uma foi derrubada
pelo ministro Gilmar Mendes no STF e outra perdeu validade
porque não
foi votada pelo Congresso. Bolsonaro deu novo bote quando tentou retirar
a Folha de S.Paulo de uma licitação pública, mas recuou diante do
alerta de que isso era ilegal. Nas três ocasiões, o presidente arreganhou os
dentes e a indústria hesitou. Foram demonstrações de força, mas momentâneas, e
que tendem a não se repetir no próximo ano, pois testaram seus limites
jurídicos e políticos. O presidente foi com muita sede ao pote, gastou
movimentos e não vai mais poder contar com o elemento surpresa em lances
semelhantes.
O chefe da Secretaria Especial de Comunicação
(Secom), Fábio Wajngarten, foi um dos cães raivosos disparados por Bolsonaro, e
ele foi capaz de sugerir que anunciantes
boicotassem os veículos críticos ao governo, como a Folha de S.Paulo.
Empoderado pelos milhões de verbas publicitárias oficiais, Wajngarten pode
fazer novas investidas nos próximos meses, chantageando o setor e
redirecionando recursos para quem considerar aliados. SBT e Record,
que já se beneficiam por essa proximidade, tendem a se tornar mais
amistosas ainda, domesticando seus departamentos jornalísticos nos próximos
meses. Quer uma medida, leitor? Cite uma única reportagem crítica a Bolsonaro
feita por essas emissoras em 2019, uma só…
Dando sequência ao plano de Michel Temer de desmonte
da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), Jair Bolsonaro deve sufocar
ainda mais a emissora, convertendo seus canais públicos em estatais, podendo
até mesmo impor um caráter adulador e personalista à cobertura. Na condição de
presidente, tem peças para mover no tabuleiro e pode se dar ao luxo de rifar as
menos importantes.
Nas redes sociais, é difícil prever o comportamento
dos grupos que apoiam o presidente. Nos últimos meses, as milícias digitais
perderam torque, mas podem recuperar o fôlego com a campanha eleitoral no
segundo semestre. As eleições são municipais, o que tende a provocar uma
pulverização da atenção nas redes, e consequente perda de força. Para voltar a
exercer a influência de antes, os militantes precisarão demonstrar uma
capacidade de articulação inédita, combinando ataques aos inimigos tradicionais
do governo e apoio aos candidatos bolsonaristas.
Grandes
eleitores
Eleições municipais são as mais complicadas para se
cobrir. Os interesses são muito difusos, as pautas muito regionalizadas e
nenhum conglomerado midiático tem a capilaridade desejada para cuidar de todos
os colégios eleitorais. Por isso, a opção é a cobertura e o acompanhamento dos
grandes eleitores, como governadores e as forças políticas que conseguem
exercer influência junto ao eleitorado. Jair Bolsonaro é um desses grandes
eleitores, mas Lula, João Dória e Wilson Witzel também. Para ganhar terreno na
guerra com o presidente, alguns veículos podem escolher dar mais espaço e
palanque aos rivais, tentando dividir a atenção do público e emplacar novos
temas na agenda social.
Outro grande eleitor é Rodrigo Maia que mostrou
força e habilidade em 2019, ocupando espaços políticos preciosos e impondo seu
ritmo e sua agenda nos rumos do país. Será seu último ano como presidente do
Congresso Nacional, já que não existe (ainda) reeleição para o cargo. Talvez
Maia seja tentado a ampliar sua zona de influência, mas precisará se apressar:
as eleições municipais vão esvaziar Brasília a partir de maio, quando os
parlamentares voltarem às bases eleitorais para tentar eleger seus candidatos.
Apesar do relógio, o presidente da Câmara tem um trunfo: conta com a simpatia
de parte da imprensa que o retrata com um bem-vindo moderado. Em meio aos
radicalismos do clã Bolsonaro, Rodrigo Maia não perde a chance de se apresentar
como uma voz
lúcida e democrática. Num eventual acirramento da guerra entre o presidente
e a mídia, não é difícil imaginar que posição ele adotaria.
Três
incógnitas
A julgar pelo que mostraram em 2019, Folha de
S.Paulo e The Intercept Brasil vão ampliar as ofensivas contra o
governo, com coberturas mais críticas e lampejos de jornalismo investigativo.
Devem explorar os escândalos já revelados, como os que envolvem Fabrício
Queiroz e Flávio Bolsonaro, e o disparo massivo de mensagens por WhatsApp nas
eleições. E podem investir em casos que minem os alicerces do governo
diretamente na figura do presidente ou na de seus ministros com telhado de
vidro. Há vários nessa condição. Iniciativas independentes como Nexo e Pública devem
seguir o mesmo caminho.
No teatro da guerra deflagrada por Jair Bolsonaro,
três dúvidas: Globo, Veja e CNN Brasil. É cedo ainda para
afirmar que a maior emissora do país vai voltar suas baterias contra o
presidente. Historicamente, mantém-se olímpica, a uma distância segura e com
movimentos muito controlados. As Organizações Globo não se indispõem com
presidentes, mas
a ira recente pode levar a gigante a deixar a zona de conforto.
Sob nova direção, a Abril não sinalizou
para onde vai andar em 2020. A crise financeira que devastou o grupo e fez a
maior editora de revistas do hemisfério virar uma sombra do que era trouxe um
novo espírito, mais prudente. A depender da estratégia
de sobrevivência, Veja pode se aproximar do governo ou rechaçá-lo
para abocanhar nacos de anunciantes descontentes com os rumos do país.
A maior incógnita, no entanto, entra em cena só em
março. Nos últimos meses, CNN
Brasil vem contratando nomes famosos e com consolidada
credibilidade jornalística. A promessa é oferecer jornalismo de qualidade,
ancorado na grife da emissora norte-americana, mas ainda pairam muitas dúvidas
sobre a efetiva independência editorial que o canal pode ter e o real alcance
da iniciativa: a CNN Brasil será um canal por assinatura, o que
diminui em muito seu poder de fogo no país. Como vai tratar o governo
Bolsonaro? De que forma vai se diferenciar dos outros meios? Que posição vai
adotar na guerra que o presidente declarou ao jornalismo? Ainda não sabemos.
O que se pode depreender é que não há sinais de que
o confronto vá diminuir. Veículos e jornalistas precisarão dobrar a aposta e
correr mais riscos, insistindo numa ideia velha e desgastada: fiscalizar os
poderes para atender o interesse público.
Pessoalmente, torço para que tenham
coragem e disposição para isso em 2020. Se não for assim, é muito capaz que em
2021 o jornalismo seja ele mesmo uma ideia vazia e obsoleta.
Rogério
Christofoletti é professor de Jornalismo na UFSC
e pesquisador do objETHOS.