terça-feira, 10 de dezembro de 2019

O QUE ESPERAR DA GUERRA DE BOLSONARO CONTRA O JORNALISMO EM 2020?




por Rogério Christofoletti*

No final de outubro de 2018, afirmei que o resultado das eleições aumentava os riscos para os jornalistas brasileiros. Com base nas trajetórias de Jair Bolsonaro e de Donald Trump, disse que os ataques aos profissionais de imprensa aumentariam, e que o novo presidente do Brasil insistiria em desacreditar o jornalismo profissional, preferindo abolir intermediários na sua comunicação com o país. Infelizmente, Bolsonaro seguiu à risca a cartilha dos autoritários em seu primeiro ano, e ao menos dois ataques por semana foram feitos à imprensa no período, segundo a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). Se foi assim no começo, o que virá em 2020?

As incertezas são muitas, mas não se pode duvidar de uma coisa: a guerra entre Bolsonaro e o jornalismo vai continuar, já que não temos nenhum indício de trégua e porque os dois pólos precisam desse embate. É da natureza do presidente alimentar zonas de atrito, pois ao mesmo tempo em que mantém a temperatura alta entre sua militância, ocupa parte substancial do debate público com suas polêmicas. Para o jornalismo, o confronto com Bolsonaro representa algum espasmo para retomar o controle de uma narrativa nacional e a tentativa de recuperação de parte da credibilidade que pode justificar sua sobrevivência. Portanto, se alguém imagina que teremos um ano mais ameno no noticiário, sinto informar que não teremos.

No cargo político mais importante do país, Bolsonaro continuará fustigando jornalistas e meios, mas precisará ser mais criativo para impor seus movimentos. Em 2019, usou sua caneta para atingir parte do financiamento das empresas de jornais. Em agosto, editou medida provisória desobrigando a publicação de balanços, e um mês depois, outra MP retirando a necessidade de avisos públicos de licitações, tomadas de preço e leilões de órgãos da administração pública. A indústria arrepiou com a possibilidade de ver evaporar cerca de 30% das receitas de seus negócios. Houve até jornal que fechou as portas! No final do exercício, ambas medidas caíram por terra: uma foi derrubada pelo ministro Gilmar Mendes no STF e outra perdeu validade porque não foi votada pelo Congresso. Bolsonaro deu novo bote quando tentou retirar a Folha de S.Paulo de uma licitação pública, mas recuou diante do alerta de que isso era ilegal. Nas três ocasiões, o presidente arreganhou os dentes e a indústria hesitou. Foram demonstrações de força, mas momentâneas, e que tendem a não se repetir no próximo ano, pois testaram seus limites jurídicos e políticos. O presidente foi com muita sede ao pote, gastou movimentos e não vai mais poder contar com o elemento surpresa em lances semelhantes.

O chefe da Secretaria Especial de Comunicação (Secom), Fábio Wajngarten, foi um dos cães raivosos disparados por Bolsonaro, e ele foi capaz de sugerir que anunciantes boicotassem os veículos críticos ao governo, como a Folha de S.Paulo. Empoderado pelos milhões de verbas publicitárias oficiais, Wajngarten pode fazer novas investidas nos próximos meses, chantageando o setor e redirecionando recursos para quem considerar aliados. SBT e Record, que já se beneficiam por essa proximidade, tendem a se tornar mais amistosas ainda, domesticando seus departamentos jornalísticos nos próximos meses. Quer uma medida, leitor? Cite uma única reportagem crítica a Bolsonaro feita por essas emissoras em 2019, uma só…

Dando sequência ao plano de Michel Temer de desmonte da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), Jair Bolsonaro deve sufocar ainda mais a emissora, convertendo seus canais públicos em estatais, podendo até mesmo impor um caráter adulador e personalista à cobertura. Na condição de presidente, tem peças para mover no tabuleiro e pode se dar ao luxo de rifar as menos importantes.

Nas redes sociais, é difícil prever o comportamento dos grupos que apoiam o presidente. Nos últimos meses, as milícias digitais perderam torque, mas podem recuperar o fôlego com a campanha eleitoral no segundo semestre. As eleições são municipais, o que tende a provocar uma pulverização da atenção nas redes, e consequente perda de força. Para voltar a exercer a influência de antes, os militantes precisarão demonstrar uma capacidade de articulação inédita, combinando ataques aos inimigos tradicionais do governo e apoio aos candidatos bolsonaristas.

Grandes eleitores

Eleições municipais são as mais complicadas para se cobrir. Os interesses são muito difusos, as pautas muito regionalizadas e nenhum conglomerado midiático tem a capilaridade desejada para cuidar de todos os colégios eleitorais. Por isso, a opção é a cobertura e o acompanhamento dos grandes eleitores, como governadores e as forças políticas que conseguem exercer influência junto ao eleitorado. Jair Bolsonaro é um desses grandes eleitores, mas Lula, João Dória e Wilson Witzel também. Para ganhar terreno na guerra com o presidente, alguns veículos podem escolher dar mais espaço e palanque aos rivais, tentando dividir a atenção do público e emplacar novos temas na agenda social.

Outro grande eleitor é Rodrigo Maia que mostrou força e habilidade em 2019, ocupando espaços políticos preciosos e impondo seu ritmo e sua agenda nos rumos do país. Será seu último ano como presidente do Congresso Nacional, já que não existe (ainda) reeleição para o cargo. Talvez Maia seja tentado a ampliar sua zona de influência, mas precisará se apressar: as eleições municipais vão esvaziar Brasília a partir de maio, quando os parlamentares voltarem às bases eleitorais para tentar eleger seus candidatos. Apesar do relógio, o presidente da Câmara tem um trunfo: conta com a simpatia de parte da imprensa que o retrata com um bem-vindo moderado. Em meio aos radicalismos do clã Bolsonaro, Rodrigo Maia não perde a chance de se apresentar como uma voz lúcida e democrática. Num eventual acirramento da guerra entre o presidente e a mídia, não é difícil imaginar que posição ele adotaria.

Três incógnitas

A julgar pelo que mostraram em 2019, Folha de S.Paulo e The Intercept Brasil vão ampliar as ofensivas contra o governo, com coberturas mais críticas e lampejos de jornalismo investigativo. Devem explorar os escândalos já revelados, como os que envolvem Fabrício Queiroz e Flávio Bolsonaro, e o disparo massivo de mensagens por WhatsApp nas eleições. E podem investir em casos que minem os alicerces do governo diretamente na figura do presidente ou na de seus ministros com telhado de vidro. Há vários nessa condição. Iniciativas independentes como Nexo e Pública devem seguir o mesmo caminho.

No teatro da guerra deflagrada por Jair Bolsonaro, três dúvidas: Globo, Veja e CNN Brasil. É cedo ainda para afirmar que a maior emissora do país vai voltar suas baterias contra o presidente. Historicamente, mantém-se olímpica, a uma distância segura e com movimentos muito controlados. As Organizações Globo não se indispõem com presidentes, mas a ira recente pode levar a gigante a deixar a zona de conforto.

Sob nova direção, a Abril não sinalizou para onde vai andar em 2020. A crise financeira que devastou o grupo e fez a maior editora de revistas do hemisfério virar uma sombra do que era trouxe um novo espírito, mais prudente. A depender da estratégia de sobrevivência, Veja pode se aproximar do governo ou rechaçá-lo para abocanhar nacos de anunciantes descontentes com os rumos do país.

A maior incógnita, no entanto, entra em cena só em março. Nos últimos meses, CNN Brasil vem contratando nomes famosos e com consolidada credibilidade jornalística. A promessa é oferecer jornalismo de qualidade, ancorado na grife da emissora norte-americana, mas ainda pairam muitas dúvidas sobre a efetiva independência editorial que o canal pode ter e o real alcance da iniciativa: a CNN Brasil será um canal por assinatura, o que diminui em muito seu poder de fogo no país. Como vai tratar o governo Bolsonaro? De que forma vai se diferenciar dos outros meios? Que posição vai adotar na guerra que o presidente declarou ao jornalismo? Ainda não sabemos.

O que se pode depreender é que não há sinais de que o confronto vá diminuir. Veículos e jornalistas precisarão dobrar a aposta e correr mais riscos, insistindo numa ideia velha e desgastada: fiscalizar os poderes para atender o interesse público. 

Pessoalmente, torço para que tenham coragem e disposição para isso em 2020. Se não for assim, é muito capaz que em 2021 o jornalismo seja ele mesmo uma ideia vazia e obsoleta.

Rogério Christofoletti é professor de Jornalismo na UFSC e pesquisador do objETHOS.

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